Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

05
Jan21

Mil Quilómetros de Autodescoberta (2/3)

Foi uma curta viagem de quarenta minutos em estrada nacional, com uma vista bem mais agradável e próxima da natureza do que teria sido pela auto-estrada. Raramente me cruzei com outros carros e, sendo uma estrada estreita, senti-me mais perto dos campos e quintas envolventes, muitas vezes com árvores muito próximas que criavam uma sombra agradável, ainda que intermitente. O calor ainda era intenso nos últimos dias de Setembro.

Apesar de ter desfrutado da viagem e da minha própria companhia, houve uma altura em que algumas questões que tinham surgido no dia anterior, quando bati à porta do casal amigo de Trindade, voltaram a aparecer. Talvez porque agora seguia inteiramente para o desconhecido. Quando deixei a cidade de Beja, deixei de ter um plano. O facto de não ir ao encontro de alguém familiar, de não conhecer o local para onde ia e de não saber se encontraria um sítio para estacionar e pernoitar, provocava-me alguma insegurança.

Tudo isto fez-me novamente questionar o sentido do que estava a fazer. Eu estava sozinho, sem conta em qualquer rede social e muito menos internet para partilhar fotografias que validassem esta minha experiência, ou uma mensagem que contornasse a ausência de uma companhia. É aqui que surge uma questão que coloquei a mim próprio e que hoje coloco a quem se atravessa no meu caminho, com o objectivo de provocar reflexão. Se estivesses sozinho no mundo, sem ninguém a observar-te, a vida que escolheste continuaria a fazer-te sentido?

Foi à boleia desta reflexão que segui viagem, enquanto apreciava a vista em cada quilómetro. Se não estivermos bem connosco e não soubermos desfrutar da nossa própria companhia, não conseguiremos relacionar-nos com o que nos rodeia de forma saudável. Usaremos pessoas e coisas sempre de uma forma egoísta, com o objectivo de satisfazer desejos, preencher vazios e suprir carências e necessidades. Este tipo de relação com o mundo externo faz com que nos apeguemos e tentemos possuir tudo aquilo que nos faça felizes.

Mas o que experienciamos, na verdade, é o prazer e não a felicidade. Segundo um provérbio Hindu, “o prazer é a sombra da felicidade”. Buscar o prazer no mundo externo é uma coisa natural ao ser humano, somos feitos de matéria mas é também a experiência sensorial que alimenta a nossa alma. No entanto, é importante que exista um equilíbrio nesta busca. Um equilíbrio que nos impeça de cair num desejo incontrolável, que nos salve da obsessão, da dependência, da morte da liberdade interior, do momento em que a busca, o desejo, se revela, afinal, um obstáculo à Felicidade.

A Felicidade é um estado permanente que deve ser procurado no mundo interno. Se a perseguirmos na dimensão física, estaremos constantemente inconstantes e insatisfeitos. No mundo externo tudo é efémero e impermanente. A um nível mais profundo acabaremos por entender que nada está realmente sob o nosso controlo a não ser a forma como nos movemos. Só é possível perceber isto quando olhamos para dentro e experienciamos a verdadeira consciência. Uma vez tocada essa consciência, acontece um processo de descoberta. A mudança será o resultado natural dessa descoberta. Pois ao contrário do mundo externo, a consciência é algo imutável e é nela que reside o nosso verdadeiro Ser. Nada melhor que a seguinte frase do romancista francês Jules Barbey d'Aurevilly para concluir esta minha reflexão: “O prazer é a felicidade dos loucos, enquanto a felicidade é o prazer dos sábios.”

Chegando a Mértola, e antes que o sol se recolhesse, fiz um reconhecimento desta vila museu com o objectivo de perceber que locais teria para visitar no dia seguinte. Para além disso, tinha o desafio de procurar um sítio apropriado para estacionar o carro e nele pernoitar.

Encontrei um lugar interessante junto ao rio e a uns metros de um hotel, imaginando a belíssima vista que teria ao acordar com os raios solares trespassando os vidros do meu carro. Igualmente atraente era a ideia de estar rodeado de árvores e não vizinhos. Mas ocorreu-me que poderia ter o sono interrompido pela presença das autoridades locais por estar estacionado no meio de nenhures, pelo que optei por ficar num parque destinado a auto-caravanas, a poucos metros dali, preservando a experiência que imaginei - substituindo as árvores por auto-caravanas.

Entretanto fez-se noite e fez-se fome. Após umas voltas pela vila, a minha intuição dizia-me que nenhum restaurante naquele lugar me iria providenciar uma refeição vegetariana. Escolhi aleatoriamente um deles e improvisei, pedindo uma sopa de legumes, um prato de feijão e arroz acompanhado com salada e umas fatias de pão alentejano. De volta ao parque de auto-caravanas, tento preparar a melhor cama possível recolhendo os bancos traseiros do carro e fazendo duas camadas de sacos-cama para ter algum conforto. Não foi, de todo, o melhor lugar onde alguma vez dormi. As duas camadas revelaram-se insuficientes para o conforto da minha (unicamente possível) posição fetal.

 

IMG_20190926_082436 copy2.jpg

 

Acordei como previa, numa luminosa manhã, e desloquei-me até ao lugar em que tencionava repousar na noite anterior para escutar o som da natureza, sem a interferência de vizinhos. Enquanto tomava o pequeno-almoço sou surpreendido por uma orquestra de chocalhos, tocados por um rebanho de ovelhas do outro lado da margem, em simultâneo com o chilrear de pássaros cuja espécie desconheço. Sentado junto de uma mesa de parque de merendas feito em material reciclado, e tentando focar o rebanho do outro lado do rio, dou conta de um incrível espelho horizontal que existia entre nós, reflectindo a silhueta das árvores e o rosto do sol.

Decidi registar em vídeo aquilo que se estava a revelar uma das melhores manhãs, senão a mais admirável, que alguma vez tive. Hoje reconheço a total inutilidade desse feito, pois os limites da tecnologia apenas permitem registar a dimensão estética de cada momento e não as que a transcendem. Permaneci sentado, imóvel e de olhos fechados, durante cerca de uma hora. Talvez estivesse a meditar sem a pretensão de o fazer. Para mim, foi um enorme feito. Sempre que me propus meditar, nunca consegui ignorar os pensamentos que me tentavam alcançar e que habitavam a minha mente mais tempo do que eu gostaria.

Li, algures, um livro em que o autor dizia que a mente, parte de toda esta incrível e complexa máquina que é o corpo humano, é uma ferramenta, e o acto de pensar deve ser feito apenas quando necessário. O problema é que na sociedade onde vivo e na geração a que pertenço, observo que perdemos o domínio desta ferramenta e nos tornámos escravos dela. Pensar tornou-se um estado natural permanente.

Um dia normal na cidade é passado na companhia de multidões, carros, aviões, anúncios, outdoors, mupis, cartazes, luzes, televisões, smartphones, montras, e muito mais. Do acordar ao adormecer, somos constantemente expostos a uma imensidão de imagens e informações para o nosso cérebro processar, fazendo do nosso subconsciente um depósito de conteúdo que condiciona o nosso estado de consciência e de presença - aquele que usaríamos para recuperar o controlo sobre a nossa mente ou abrandá-la. Caso contrário, tornamo-nos reféns da nossa própria mente e afogamo-nos num mar de pensamentos fortemente agitado, à maré do ambiente urbano e tecnológico pelo qual passamos, sem viver.

Após ter meditado, iniciei a caminhada para explorar a vila, de mochila às costas.

Ali a vida acontecia calmamente. Poucos carros circulavam pelas ruas e as pessoas que não caminhavam com serenidade, repousavam nos bancos espalhados pela vila. Ao longo dos inúmeros lugares estrategicamente pensados para contemplar a incrível vista no decorrer da subida até ao Castelo, a distinção entre turistas, trabalhadores e moradores era feita somente pelo traje com que cobriam os seus corpos.

Após explorar cada miradouro, cheguei ao Castelo de Mértola, situado na confluência da Ribeira de Oeiras com o rio Guadiana. Visitei a alcáçova do Castelo onde se encontra o Campo Arqueológico de Mértola e onde podemos ver as ruínas de um bairro muçulmano. Visitei a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, único exemplar de arquitetura religiosa islâmica remanescente no país e, por último, o cemitério, com uma incrível vista para a ponte da Ribeira de Oeiras. Ainda no Castelo, ao conversar um pouco com uma funcionária que se encontrava na sua pausa de cigarro, apercebi-me que ainda havia alguns museus que eu poderia ter visitado, mas não tencionava passar o tempo em lugares fechados, muito menos com bilheteira, pois parte do desafio era utilizar o mínimo dinheiro possível, tirando o máximo partido do que teria à minha mercê.

Pelo meio da tarde, senti que já tinha retirado de Mértola o que havia para retirar. O propósito desta viagem era estar em constante movimento, sem permanecer no mesmo lugar mais do que uma noite.

Depois de algum tempo a pensar qual seria o meu próximo destino, decidi rumar em direção a Vila Nova de Santo André, para visitar uma amiga muito especial dos meus tempos de faculdade, algo que já adiava há muito tempo. Depois de confirmada a disponibilidade dela, voltei à estrada nacional, aproveitando para descobrir algumas vilas e aldeias pelo caminho. Ao chegar a Santiago do Cacém, uma cidade um pouco mais desenvolvida e movimentada, comecei a desconfiar que, com o pouco tempo que tinha, não teria muita sorte em encontrar um lugar seguro e tranquilo para passar a noite no carro. Adiei essa resolução para depois e concentrei-me em chegar a Santo André...

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

30
Mar20

Não Como Animais e Não Sou Vegan

 

Antes de abordar este tema quero começar por dizer que este texto tem como único propósito a partilha do meu testemunho a respeito de uma das decisões mais importantes da minha vida: a transição para uma alimentação inteiramente vegetariana - e o impacto que esta teve no meu quotidiano e transformação interior.

As razões pelas quais decidi fazê-lo serão, naturalmente, encontradas no decorrer deste meu desabafo, mas, especialmente, por acreditar que as experiências de cada um poderão de alguma forma vir a ser úteis para alguém (da mesma forma que ao longo dos anos tem sido útil para mim conhecer as histórias e as experiências das pessoas com quem partilho um lugar no mundo).

 

andrew-neel-z55CR_d0ayg-unsplash copy_resize.jpg

 

Como é costume dizer-se, “o tempo voa”, e passaram hoje dois anos desde o dia em que eliminei, por completo, qualquer ingrediente de origem animal da minha alimentação. Como tantos outros, fui impulsionado pela visualização de um documentário, e antes que alguns se apressem a colocar-me um rótulo, como eu igualmente faria há dois anos, permitam-se continuar a ler o texto e perceberão que o impacto que este teve em mim, transcendeu a barreira das modas a que estamos habituados.

Tudo começou numa serena tarde do período sabático que há dois anos decidi tirar (por razões que mais tarde falarei noutro tópico), enquanto procurava um documentário interessante para ver dentro da grelha da Netflix. Não sei que forças me impeliram a escolher algo relacionado com os efeitos negativos da indústria pecuária, mas certamente uma curiosidade já pairava sobre a minha consciência, pelo que decidi dar-lhe vazão naquele momento. Não consigo também precisar o nome do documentário em questão, nem quais os aspectos principais em que se focava (à parte das imagens de tortura comuns a todos eles) porque, ainda nessa mesma tarde, movido pelo choque e pela vontade súbita de saber mais sobre o assunto, mergulhei num serão de documentários que se estendeu até o YouTube. Noutra altura da minha vida, eu não passaria do primeiro - e quem sabe se chegaria até ao fim. Cada vez mais acredito que existem alturas certas para absorver determinadas coisas e que nada nos deve ser imposto. Falarei disto mais adiante.

Não me lembro do que almocei nesse dia, mas posso garantir-vos que o meu jantar foi inteiramente vegetariano e que todas as minhas refeições até hoje mantiveram esse requisito.

Tendo em conta a posição que actualmente tenho a respeito da exploração de todo o reino animal para satisfação das necessidades, e não necessidades, do Homem, seria ético da minha parte dizer-vos que foram as imagens de crueldade e sofrimento causado aos animais que me fizeram tomar esta decisão, literalmente, do dia para a noite. No entanto, estaria a mentir-vos se o fizesse, não querendo desvalorizar o impacto das imagens e a tristeza e sentimento de culpa que dentro de mim fizeram brotar. Foram, sim, as evidências científicas que fui descobrindo, de que afinal, toda esta máquina incrivelmente complexa que é o corpo humano, não foi desenhada para caçar, comer e digerir outras espécies sencientes e seus derivados (embora possua dentro de si, como mecanismo de sobrevivência, todas as capacidades para tal). Antes do Homem desenvolver a arte do cultivo, foi certamente por essa especial característica e habilidade física e intelectual, que faz de nós, humanos, não a espécie mais forte, mas a mais completa e resiliente, que conseguimos controlar o fogo, criar armas para inverter a nossa posição de presa perante alguns animais e resistir às mudanças climáticas (como a era do gelo que o Homem de Neandertal enfrentou).

Actualmente, com todas as condições físicas, intelectuais e tecnológicas asseguradas, já não necessitamos de nos apropriar de outras espécies para produzir bens essenciais ou, sobretudo, para nos alimentar. Esse hábito só nos tem prejudicado em larga escala, reflectindo-se não só no meio ambiente, como também na nossa saúde, através da quantidade de doenças crónicas que têm vindo a crescer em pleno século XXI.

Quanto mais informação eu acumulava, filtrava e absorvia, maior era a fome de conhecimento; e quanto mais a saciava, maior era a revolta que começava a crescer dentro de mim. Comecei a sentir que me tinham vendido uma mentira a vida toda e que muitos dos nossos hábitos do quotidiano são afinal sustentados por falsas crenças. Crescendo a agir sob o "efeito manada", sem questionar, por exemplo, por que raio comemos cereais com leite ao pequeno-almoço, que é nada mais nada menos do que uma combinação de um produto altamente processado, rico em açúcares de absorção rápida, gorduras, calorias e diversos aditivos, com uma secreção nutritiva de um mamífero de outra espécie animal, que tem na sua composição todos os elementos necessários para nutrir as suas crias enquanto estas não conseguem digerir alimentos sólidos nem alimentar-se de forma autónoma. Já para não falar de todo o processo da indústria do leite, desde as condições a que os animais são expostos, passando pela manipulação cruel e abusiva a que estão sujeitos, até à bonita e inocente embalagem que alberga o homogéneo e sedutor liquido branco que tanto e tantos nos habituámos a consumir e que, durante anos, foi sinónimo de saúde e bem-estar. Como dizia Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazi, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

Isto é apenas a ponta do icebergue. Mas não pretendo transformar isto num artigo científico, alargando-o para o consumo de outros derivados de animais ou de partes do seu corpo, usei este pequeno exemplo para ilustrar que este tipo de consumo já não é uma questão de sobrevivência (pelo menos para o mundo ocidental), mas sim uma prática culturalmente entranhada nas nossas sociedades e que tem sido perpetuada durante gerações.

Apesar de ter passado o resto da semana a ver vídeos de palestras e a ler artigos científicos e testemunhos pessoais, tudo aquilo a que fui exposto nesse dia, e no período sabático em que me encontrava, foi mais que suficiente para não conseguir olhar para a comida com os mesmos olhos. Não recomendo a ninguém fazê-lo da forma que fiz, porque embora o nosso corpo funcione do mesmo modo, o nosso organismo não absorve nem reage a determinados alimentos e mudanças de hábitos de forma igual. Tudo o que fiz foi aprender a escutar o meu corpo e a forma como ele ia reagindo de dia para dia a cada refeição, uma habilidade por muitos esquecida, talvez por vivermos num mundo cada vez mais acelerado e industrializado, onde o conhecimento tem aumentado em proporção à sabedoria que se tem perdido.

Embora pareça ter sido insensato e irresponsável da minha parte, a verdade é que fiz os possíveis para que esta transição não se revelasse um problema na minha saúde. Fiz exames de rotina nessa altura e também um ano depois, para poder comparar e precaver-me, embora em momento algum tenha sentido que a minha saúde estivesse em risco, pois acreditei, desde o primeiro dia, que o que estava a fazer era o mais correcto a nível biológico.

Apesar de naquela altura, devido à inexperiência, as minhas refeições não serem tão variadas como as que actualmente preparo, tinha um certo cuidado para não cair no típico arroz com feijão, nos tempos em que a preguiça tentava levar a melhor. Muitos dos erros comuns de quem se inicia nesta aventura é acabar por se render à tentação dessa combinação mais vezes do que é o suposto, ou à de uma simples salada que, apesar do seu valor nutritivo, apresenta um défice de muitos outros nutrientes de que o organismo tanto necessita, trazendo a longo prazo sérios problemas para a saúde.

De imediato, deixei de “sofrer” de prisão de ventre, algo que era tão natural para mim desde tenra idade. Senti que o meu aparelho digestivo funcionava na sua plenitude, proporcionando-me uma maior sensação de leveza e energia após cada refeição.

Adoraria partilhar aqui uma série de melhorias no meu organismo mas, no meu caso particular, esta foi a mais impactante e a que a minha memória me permite retratar mais fielmente, para além dos resultados animadores dos exames de rotina que havia feito um ano depois, em comparação ao anterior, mesmo que no primeiro não existisse nada de preocupante. Isto foi suficiente para provar a mim mesmo que tinha tomado a decisão certa e que me encontrava num bom caminho.

Felizmente, as vantagens que esta decisão trouxe à minha vida foram para além dos resultados no meu corpo. Aprender a cozinhar foi uma delas, pois até à data, as visitas de médico à cozinha eram alternadas entre o frigorífico e o microondas, excepto raras ocasiões em que a minha mãe não podia dar conta das refeições, e lá teria eu de dar atenção ao fogão para preparar o clássico prato da casa: esparguete com bife de peru. Era o máximo que a minha preguiça e paixão pela culinária permitiam, sem esquecer os hambúrgueres e ovos estrelados no banco de suplentes, caso o peru estivesse lesionado.

Sim, nesta altura era o quase-trintão que retorna à casa de família, história que muitos conhecem, embora neste caso fosse devido a razões muito além das económicas.

Uma vez que propor algum vegetarianismo à minha mãe seria como sugerir-lhe que aprendesse mandarim e mudar a ementa aos meus irmãos seria como, na minha infância, obrigarem-me a comer ervilhas, tive de accionar mecanismos de sobrevivência... e bem-ditos sejam os motores de busca na internet, que foram o meu livro de receitas quando, de repente, me encontrei a navegar por mares desconhecidos.

Em pouco tempo acabei por ganhar gosto em materializar as receitas que encontrava, desfrutando daquilo que gostava de considerar “obras de arte” comestíveis. Isto porque, nesta fase da minha relação com o fogão, tinha de encontrar formas de manter a chama acesa, caso contrário, cozinhar tornar-se-ia um martírio.

No final de cada prato, e antes da degustação, fazia questão de fotografá-lo. Naquela altura já tinha cortado relações com o Instagram, mas as fotografias serviram para partilhar, pessoalmente, entre o meu círculo, e para reunir uma espécie de portfólio, a que eu pudesse recorrer na falta de ideias para cozinhar. Hoje em dia não mantenho essa prática, excepto quando me pedem, uma vez que esta relação se encontra bem consolidada e evoluiu para uma fase mais profunda. Apercebi-me de que o mais importante na vida é a viagem e não o destino. O processo e não o resultado final. Cozinhar não foge a essa premissa. Digamos que, para mim, funciona como uma espécie de meditação, leva-me a focar a minha atenção no que estou a fazer e a atenuar o turbilhão de pensamentos que tendem constantemente a invadir a minha mente. É uma forma de me sentir presente.

Outro aspecto positivo foi o facto de tudo isto, de forma natural, ter-me levado, gradualmente, a fazer escolhas conscientes na altura de comprar, a fim de reduzir a pegada ecológica e reforçar o meu sistema imunitário, levando-me a aprender a analisar os rótulos dos produtos, a cortar com os açúcares refinados, a reduzir drasticamente o consumo de produtos processados, a adquirir leguminosas e sementes a granel e, mais recentemente, levando-me a frequentar mercados e a optar por produtos locais, sazonais e biológicos.

Como resultado disso, percebi que uma alimentação vegetariana nem sempre é sinónimo de uma alimentação saudável, pois, até então, a soja e os seus derivados eram quase sempre titulares na minha equipa. A maior parte dos meus pratos (à excepção de algumas leguminosas e poucos legumes) tinham como base soja, tofu ou seitan, como acompanhamento arroz ou massa, e, às vezes, uma salada simples de alface e tomate. Curiosamente a soja e as massas são, hoje, elementos que raramente saem do banco, e os legumes e frutas passaram a representar cerca de oitenta por cento da minha tática.

Para além da minha saúde, a minha carteira beneficiou um pouco com esta evolução, porque quando se fala sobre a dieta vegetariana ser muito dispendiosa para determinadas pessoas, sei, por conhecimento empírico, que isso não corresponde inteiramente à verdade. Se mantivermos os mesmos hábitos alimentares e somente tentarmos encontrar substitutos (algo que é muito natural acontecer no período inicial de transição), aí sim, vamo-nos deparar com uma diferença de preços significativa. Estou a referir-me a versões vegetarianas de hambúrgueres, nuggets, rissóis, almôndegas, queijos, fiambres, bolos, biscoitos ou leites. Quase tudo hábitos alimentares adquiridos pós-industrialização, essa que nos toldou a percepção que temos dos ingredientes (e sua proveniência que compõem um prato). Ou seja, são alimentos perfeitamente dispensáveis se mudarmos o nosso mindset.

Entendo que nos dias de hoje, tal como temos vindo a perder a capacidade de escutar o nosso corpo, é também complicado para muitos, e sobretudo para os que têm pessoas a seu encargo, encontrar tempo e disposição para questionar e implementar este tipo de mudanças no seu quotidiano. A maior parte de nós vive em "piloto automático", "multi-atarefado" e constantemente exposto a milhares de informações a cada hora que passa. Não obstante, tem de existir por parte de cada um, à medida que enxerga esta realidade, vontade e determinação para romper com este ciclo doentio em que temos vivido no mundo moderno.

Outro aspecto positivo foi a expansão da empatia pelos meus semelhantes para todo o reino animal. Creio que não existe ninguém que não goste de animais, nem que seja apenas por uma espécie em particular ou pela admiração da sua beleza estética. Já o respeito e empatia por todos eles, é outra conversa e é algo de que eu próprio carecia em certa medida.

Nesta fase transformadora em que me sentia um pouco só, decidi explorar essa empatia com a adopção do Kovu, o meu companheiro de quatro patas que tanta dor de cabeça me deu, mas que também muito me ensinou. Quem diria que um dia eu iria aprender algo com um cão, animal do qual sempre gostei, mas nunca o suficiente para permitir que me desse banhos de língua e me cobrisse o chão de pêlo, tal como o Kovu faz, com tamanha mestria.

Na verdade, já tinha esta intenção por conta da influência que o Tchuy teve em mim. Falo do cão de um dos meus melhores amigos, pois foi através da convivência com ele, e da sua história, que cresceu em mim a empatia pelos cães. No entanto, ao mesmo tempo que sentia ser a altura ideal para adoptar um cão, dei por mim caído numa contradição. Deixei de compactuar com a indústria da exploração animal através da alimentação e, gradualmente, noutros aspectos do meu dia-a-dia, para depois voltar a dar um passo atrás com a sua adopção? Como podem imaginar, falo da questão das rações. Dei por mim inserido num ciclo de egoísmo, no qual outros animais são abatidos para que o “meu” se possa alimentar de forma cómoda e nutricionalmente completa.

Embora eu tenha contribuído para que menos um rafeiro fosse parar às ruas ou a um canil municipal, não deixa de existir uma certa dose de egoísmo ao compactuar com a colectiva distinção de Seres, domesticando e alimentando artificialmente uns em detrimento de outros. No entanto, e a fim de atenuar um pouco esse paradoxo, fiz uma pesquisa intensiva sobre alimentação canina e decidi alimentar o Kovu com uma marca de rações italiana que não testa os seus produtos em animais. Sim, porque este ciclo injusto não se limita à matança. Alguém tem de provar antes de ir para o mercado, e esta face da moeda também não é nada agradável de se ver, para não falar dos ingredientes que compõe a maior parte das rações que estão no mercado, inclusive em versões premium.

Fiz esta escolha sabendo que no futuro viria a alimentá-lo com ração vegetariana, porque antes de o acolher estudei muito essa possibilidade e entendi que os cães podem ser considerados “omnívoros”. Não no sentido literal da palavra, mas no sentido em que demonstram maior flexibilidade no que toca à alimentação, característica herdada pelos lobos que se acostumaram à convivência com os hábitos alimentares humanos. No entanto, para que tal se verifique, o alimento que lhes é oferecido deve ser nutricionalmente equilibrado para atender às suas necessidades fisiológicas. Estamos a falar de conter todos os aminoácidos essenciais que não são produzidos pelo seu organismo e de todos os lípidos, vitaminas e minerais necessários para a manutenção da sua boa saúde. 

A ideia seria mudar a alimentação do Kovu depois de ele completar um ano de vida, fortalecendo assim o seu sistema imunitário com a alimentação convencional, para não negligenciar o seu crescimento. Mas decidi adiar por mais um ano e em breve farei essa transição de forma mais atenta.

Esta questão levanta muita controvérsia e consigo imaginar quais as objecções que muitos poderão levantar, como por exemplo, sobre ser ou não ser contranatura alimentar um cão com ração vegetariana. Mas visto sob esse prisma, podemos reparar que nada é natural a partir do momento em que alimentamos os cães com rações e os subjugamos a regras e condições criadas por nós. Estas práticas não lhes são naturais, apenas surgem da domesticação dos animais pelo Homem moderno (motivos que me levam a considerar o Kovu o último companheiro de quatro patas que voluntariamente terei comigo). Nesta altura, mais importante do que discutir o que é, ou não, contra a sua natureza, é questionar como e quais as melhores formas de os tutores de animais domesticados garantirem de forma consciente a sua estimação, segurança, saúde e bem-estar na medida do que nos é possível fazer.

Não pretendo desviar-me muito mais do assunto, até porque para aprofundar esta matéria já existem muitos estudos e debates onde ambos os lados carregam argumentos bastante válidos. Tal como na questão da alimentação para humanos, eu jogo com a minha intuição e com a informação que me parece fazer mais sentido, testando e observando atentamente os seus efeitos, com o acompanhamento de um profissional de saúde, neste caso um veterinário.

Como podem imaginar, nem tudo foi um mar de rosas e não seria justo se terminasse este testemunho por aqui.

Vou começar pelas questões menores, mas que também tiveram o seu peso. Estou a falar, por exemplo, de que a partir do primeiro dia, e durante bons meses (se não um ano), sentia muitas vezes uma fome desgraçada a todo o instante. Isto devia-se ao simples facto de os alimentos de origem vegetal serem de digestão e absorção mais rápida. O meu organismo não estava habituado, pelo que levou algum tempo a adaptar-se a esta mudança, depois de vinte e oito anos acostumado a um certo padrão.

Devo também confessar que, tal como muitos poderão compreender, satisfazer a minha velha compulsão por doces foi muito complicado. Noventa por cento do que encontramos nas montras das pastelarias e prateleiras dos supermercados está contaminado com derivados de animais, embora no segundo caso já existam mais alternativas, mas que actualmente não vão ao encontro das minhas opções alimentares, não negando a possibilidade de pontualmente experimentar uma coisa ou outra.

Uma das dificuldades que mais enfrentei, como já mencionei anteriormente, foi o facto de me sentir sozinho nesta luta e ver-me passar por tamanha transformação e despertar de consciência enquanto tudo à minha volta parecia estático. Como um jovem de classe média baixa que praticamente viveu toda a sua vida num bairro social (por mais que o meu grande leque de “amigos” transcendesse essa barreira), jamais imaginei passar por este processo. Este tipo de questionamento, e de causas, nada tinha que ver comigo e, provavelmente, eu seria um idiota que se iria rir e banalizar quem estivesse a passar pelo mesmo. Tão verdade, que a minha mudança gerou alguma estranheza entre os meus amigos e familiares.

Senti muito a falta de ter com quem partilhar e trocar ideias. Alguém que estivesse no mesmo barco que eu, alguém que pudesse remar por mim nas alturas mais críticas e vice-versa. Alguém que já tivesse passado pelo mesmo e pudesse partilhar comigo o seu testemunho e algumas dicas numa fase inicial. Se ainda tivesse conta no Facebook talvez descobrisse, entre os meus três mil e tal “amigos”, alguém que pudesse preencher essa lacuna, mas junto com isso viriam outras coisas menos boas e eu não estava disposto a retroceder numa outra decisão que tomei fazendo da solidão um motivo para voltar às redes sociais.

Por último, e para finalizar este testemunho que já se faz longo devido à minha inexperiência (talvez devesse escrever um livro e não um blog), gostaria de abordar uma outra questão muito importante: a aceitação e o respeito pelas escolhas dos outros.

Como referi anteriormente, esta transformação trouxe-me muita revolta pelas respostas que fui encontrando para as minhas questões. Estando sozinho neste processo, procurava trazer luz para dentro do meu círculo mais próximo, cometendo o erro de achar que, pelo facto de tudo isto se tornar tão claro e lógico para mim, o mesmo aconteceria com os meus, quando confrontados com o mesmo conhecimento.

Os primeiros debates tiveram lugar à mesa de jantar, entre família, por minha iniciativa, provocando reflexão através de questões que eu lançava. Depois continuaram entre amigos e outros familiares quando, à medida que me convidavam para eventos, se deparavam com esta minha nova “condição”. Nessas ocasiões o debate partia deles, questionando os meus motivos, e aqui as opiniões eram divididas. Todos respeitavam a minha escolha, mas à esquerda tinha os que a admiravam e à direita os que torciam o nariz, mostrando-se inclinados para o debate, contra-argumentando as minhas razões. Não posso negar que, nesta fase em que a panóplia de informações era fresca na minha memória, ansiava por essa oportunidade de descarregar todo esse conhecimento que era demais para carregar sozinho e, consequentemente, tentar desconstruir as crenças de quem argumentava comigo, herdadas por anteriores gerações, e que também foram minhas durante anos, fruto da ausência de questionamento e reflexão profunda. É compreensível, pois começa desde cedo o condicionamento e a implantação de valores e de crenças nas escolas onde somos educados, ou melhor, instrumentalizados, com o sistema tradicional de ensino que não nos ensina como pensar, mas o que pensar. O mesmo se pode dizer da educação que alguns de nós tiveram em casa, por pais igualmente condicionados que seguem, inconscientemente, o mesmo código de conduta.

Aquilo que deveria, para mim, ter como objectivo a partilha de conhecimento, deixava de ter essa função à medida que me ofereciam resistência ao que eu argumentava, dando lugar a uma luta de egos entre o meu conhecimento e o dos outros, acabando eu próprio por entrar nessa disputa inconscientemente e chegando, inclusive, a elevar o tom da minha voz na impotência de conseguir elucidar o outro, ou melhor, de conseguir sequer ser ouvido. Já para não falar das piadas de que fui alvo, que alimentavam ainda mais essa sensação (e eu até me considero uma pessoa com bastante sentido de humor e o primeiro a rir de mim próprio). O que me incomodava não eram, de todo, as piadas, mas sim a pobreza da maior parte delas, e o facto de serem fruto de uma clara ignorância a respeito da temática em questão.

Com o tempo fui-me apercebendo de que estas discussões apenas me criavam alguma ansiedade e que raríssimas vezes tinham algum efeito positivo. Na verdade, a frustração vinha do facto de eu criar expectativas, ao achar que os outros à minha volta estariam dispostos a ouvir-me, e que conseguiria provocar alguma reflexão neles e, quiçá, uma mudança nos seus hábitos e pensamentos.

No seguimento de tudo isto, vem a conclusão a que cheguei e que já referi anteriormente: Cada um de nós tem um estágio ideal na sua vida para questionar e absorver determinados assuntos. Períodos em que atingimos diferentes estados de pensamento e de consciência, impulsionados por determinados acontecimentos e vivências, quer pelo tempo que vão somando, quer pelo confronto directo com experiências traumáticas.

Entendi também que o ser humano tende a apegar-se ao seu conhecimento e conjunto de crenças como parte da sua identidade, e, quanto maior for a sua identificação com o ego, maior será a sua resistência a ideias contrárias àquelas que, voluntária ou involuntariamente, adquiriu.

Assim sendo, qualquer tentativa de mudar o próximo ou de sobrepor a nossa verdade à do outro é inútil e até contraproducente. Quanto mais o tom de voz se eleva, maior é o efeito contrário ao pretendido, pois o ser humano receberá isso como um atentado à sua persona, e, ao sentir-se atacado, activa automaticamente o seu mecanismo de defesa, negligenciando, nele próprio, qualquer espaço para ouvir e estando apenas interessado em manter de pé as fronteiras da sua “identidade”.

Uma vez compreendido isto, deixei de ter a pretensão de querer “mudar o mundo”. Na verdade, ele já está em constante mutação, resta-me apenas escolher como participar nessa mudança, trilhando um caminho escolhido por mim, em sintonia com o meu estado de consciência e com as minhas convicções, ainda que ao virar na curva me espere um caminho solitário. Entenda-se que solitude não é sinónimo de solidão e essa é a fase da viagem em que me encontro neste momento, a descoberta e o vislumbre gradual dessa verdade.

Esta minha nova conduta permitiu que a humildade não perdesse lugar para a arrogância, qualidade destrutiva muito comum entre os que seguram bandeiras e tencionam mudar o mundo. A arrogância cresce silenciosamente, e quando floresce, transforma-se em ódio.

O meu cão não é o meu melhor amigo, nem gosto mais de animais do que de pessoas. Gosto da natureza como um todo, mas em tempos de crise salvarei primeiro o meu semelhante. Assim como em tempos de agonia, se nada tiver para meter à boca, não serei vegetariano nem vegan, serei um homem com fome e entrarei em modo de sobrevivência animal, comendo o que tiver ao meu alcance. Não faço da minha dieta e dos meus princípios uma religião ou um clube. Não é um regime porque não faço restrições alimentares, mas sim novas escolhas de acordo com a minha consciência. Não é uma colectividade associativa onde dou vazão à necessidade que o Homem tem de pertencer a grupos para se sentir seguro (o que se compreendia nos tempos dos nossos ancestrais que viviam em ambientes hostis, como a natureza selvagem). Também não é uma questão de ego e de querer alimentar a “fome de reconhecimento" (que Dale Carnegie tão bem descreve como necessidade primordial do Homem) ao pertencer a um grupo minoritário que contrarie o pensamento corrente.

Enquanto Ser, não sou o país em que nasço, a tribo a que pertenço, aquilo que como, a roupa que visto, as coisas que compro e os bens que possuo. Sou a minha consciência, as minhas escolhas e as minhas acções. Sou apenas mais um entre tantos nesta família humana, e para não compactuar com a construção de muros que nos tende a separar conforme a história nos conta, eu escolho não segurar bandeira nenhuma, só assim creio poder contribuir para a construção de pontes entre nós/entre todos.

A partir do momento em que isto se tornou claro para mim e passou a fazer parte do meu modo de estar, comecei a notar pequenas mudanças a acontecer dentro de mim e também à minha volta. Se formos fiéis a nós próprios, sem medo de ser quem somos, sem nos deixarmos corromper pelo "efeito manada" e trabalharmos a nossa consciência, essa energia emana para fora e há sempre alguém que nos observa e que, de alguma forma, poderá sentir-se contagiado sem que tenhamos qualquer pretensão de influenciar ou mudar o outro. Da mesma forma acontece connosco.

Segundo Sócrates, "aquele que mover o mundo, primeiro se moverá”.

 

Foto de Andrew Neel em Unsplash

 

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.