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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

18
Jan22

Snobismos à Parte

Pratico hoje, neste auto-retrato, o exercício de me despir dos habituais snobismos com que me habituei a cobrir — como se estes me conferissem qualidades intelectuais e me destacasse entre os demais semelhantes.

 

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Recentemente, dei por mim a questionar se o hábito de afirmar, com alguma presunção, que não reconheço graça no acto de tirar selfies, não será também um acto de vaidade e de um certo narcisismo. Apercebi-me de que alguns ilustres contemporâneos que eu muito admiro, e cuja inteligência me distância a largos passos, fazem coisas no mundo digital que eu normalmente condenaria, e que em nada comprometem a qualidade que fazem notar nas suas obras, ou nos seus feitos. Terei eu a empáfia de achar que também eles estão errados? Jamais! Hoje tenho a perspicácia de entender que talvez eles sim, se sintam mais livres do que eu afirmo ser. Não estarão eles, mais velhos, vivendo como jovens, e eu, mais jovem, vivendo como um velho?

Que necessidade é esta de me querer fazer diferente dos outros quando todos o são à sua maneira? Se considero a autenticidade uma qualidade mais nobre do que a peculiaridade, então que eu Seja, e não que pareça. Podemos pintar-nos da forma como bem nos aprouver, porém, a melhor aprovação não é daqueles que nos veem, mas sim daqueles que nos sentem.

Alguns clichés têm a sua razão de existir, como aquele que diz que o segredo da vida está no equilíbrio das coisas. Todo o meu trabalho é uma revelação, é uma revelação do que eu sou, do que eu sinto, do que eu penso, e do que eu vejo, e quem eu sou tem um rosto.

Tanta merda para publicar uma selfie.

01
Dez21

Activismo + Redes sociais = Aprovação social

Podia bem ficar-me pelo título. Não é lá grande fórmula, tampouco uma invenção, mas funciona. Dispensa todo e qualquer esforço em expressar por palavras a reflexão que se segue. Tenho a certeza que se a colocasse sobre uma imagem de fundo e partilhasse na minha conta de instagram, renderia uns quantos Likes e partilhas, até mais do que este texto (talvez faça a experiência). As frases bonitas estão na moda, enquanto os livros nem por isso, de onde muitas vezes elas são retiradas. A demanda por conteúdo de fácil e rápida digestão está a aumentar em flecha, e com isso, o número de “produtores de nada” também. Mas vamos ao que interessa.

 

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Considero que existe uma diferença entre pessoas ilustres, famosos, e influencers. Estes últimos, os mais recentes, tendem a fundir-se com o título de famosos, já pouco os distingue na verdade. Um famoso que não se torne influencer morre na praia, e um influencer que não seja famoso terá exactamente o mesmo destino. Já os ilustres, que se distinguem por mérito próprio, pela sua excelência e pelas suas capacidades, sobrevivem sem a necessidade de seduzir potenciais seguidores. 

O poder mediático dos ilustres nasce do reconhecimento dos seus feitos e das suas obras, o dos famosos pode nascer de variadíssimas formas, como cair de um skate ou aparecer num reality show, e o dos influencers, nasce do nada. Enquanto nos primeiros, o trabalho é o seu principal foco e o seu reconhecimento apenas uma consequência, nos dois últimos as prioridades estão invertidas. A todo momento têm de se reinventar e explorar novas formas de se manterem na ribalta, porque aquilo que os ascendeu é de tal forma frágil e efémero, que não os sustém na linha da frente por muito tempo. 

As redes sociais tornaram-se numa arena onde todos competem pela atenção do público. As regras do jogo mudaram. Devido ao surgimento do algoritmo e do seu constante aperfeiçoamento, plataformas como o instagram, que antes mostravam no feed de cada utilizador, e por ordem cronológica, todos os conteúdos publicados pelas pessoas que estes seguiam, hoje filtram esses mesmos conteúdos de acordo com uma série de critérios, fazendo com que muitos deles fiquem pelo caminho.

Alguns ilustres aproveitaram a sua notoriedade, isto é, o seu poder, para dar voz, nestas plataformas, a causas sociais com as quais estão genuinamente engajados. Já os famosos e os Influencers, ao perceberem que mostrando preocupações sociais podiam aumentar a sua popularidade entre as massas, passaram também a fazê-lo, gerando assim “conteúdo” que se torna viral, e que os torna a eles próprios notícias de jornal, de revistas cor-de-rosa e tema de conversa em programas de televisão — um pouco à semelhança das pessoas que fazem donativos generosos a instituições para escapar dos pesados impostos. Não é que eu tenha propriamente algo contra isso, ainda bem para as instituições e para os beneficiários. A verdadeira questão é que nem tudo é o que se faz parecer.

No que toca aos donativos monetários, a motivação de cada pessoa pode ser diferente, mas o resultado desse gesto é o mesmo independentemente de quem o faça. Já nas campanhas de sensibilização online, aí o resultado não é efectivamente o mesmo. Quando a intenção é ser falado e ficar bem visto, a sua campanha será algo sem substância, cujo impacto no público será efémero e insuficiente para causar reflexão — trata-se apenas de propaganda e sensacionalismo. Uma publicação ou storie à la activista, no meio de muitas outras sobre coisas triviais, é uma gota no oceano que rapidamente se evapora. Faz-me lembrar alguns políticos e associações quando inauguram projectos sociais ou ambientais, aparentemente inovadores, que depois de ganharem prémios e darem boas machetes na comunicação social, decidem mudar a página e deixar cair esses mesmos projectos por falta de investimento.

Hoje, podemos observar um enorme desequilíbrio no mundo, quer a nível ambiental, quer a nível espiritual. Estamos cada vez mais divididos e polarizados, e muito se deve ao algoritmo do mundo digital que favorece a criação de bolhas sociais. Numa altura em que questões como a crise ambiental, o racismo, a igualdade de género, os direitos dos animais, os direitos da comunidade LGBTI, entre outros, têm dominado a internet e consequentemente os media, os famosos e influencers perceberam que a ostentação de beleza e riqueza, que faziam com maior frequência, não lhes ficaria muito bem no mundo actual. Além disso, podem correr o risco de não saírem de um certo nicho de pessoas, ou até mesmo de serem cancelados. O mesmo podemos observar nas empresas, que hoje se sentem forçadas a repensar a forma como se apresentam no mercado, e como fabricam e vendem os seus produtos ou serviços. Vestem a capa de empresas verdes, mostram preocupações ambientais e sociais, e adotam práticas mais sustentáveis e humanas para não serem alvo de processos, nem apanhados em escândalos que poderão comprometer a sua cotação na bolsa. Relembremos, é apenas uma capa na maior parte dos casos.

Para ser mais preciso, estas pessoas já não procuram apenas likes e seguidores, procuram também sentir que são especiais e mostrar que fazem a diferença no mundo — já não é cool ser-se apenas famoso. É preciso ser-se activista e filantropo, para garantirmos o nosso lugar no céu e sentirmo-nos como uma espécie de Madre Teresa de Calcutá. Carregam a pretensão de querer mudar o mundo e de influenciar as massas, enquanto no backstage são o oposto daquilo que pregam, e onde por vezes são apanhados na curva. Querem ser Gretas e Malalas com apenas um quinto do esforço e da renúncia que estas têm de fazer diariamente, assim como muitas outras vozes activas pelos direitos humanos e pelo meio ambiente.

Durante o período de confinamento a que todos fomos submetidos no âmbito da pandemia, observei que muitas das pessoas cuja vida profissional depende do público, e que foram muito prejudicadas, como por exemplo a classe artística e cultural, aproveitaram o tempo livre para se dedicarem mais ao activismo fast-food. Frequentemente faziam lives e publicações nas suas redes a defender causas pelas quais tinham alguma simpatia, ou nas quais se reviam. Para mim, foi notório a falta de profundidade no que defendiam, e em muitos casos, completamente desalinhados daquilo que habitualmente representam. Foi um claro aproveitamento dos temas que pontualmente dominavam os noticiários em todo o mundo, para poderem fazer conteúdo e assim manterem a sua popularidade. 

Embora o que me tenha motivado a escrever sobre este tema tenha sido as capas de beatice e moralismo que observei nas pessoas que dominam a atenção do público nas redes sociais, esta prática estende-se a todo e qualquer utilizador comum que tenha uma conta numa destas plataformas. Neste grupo o cenário de hipocrisia é ainda mais visível. Se em relação ao primeiro grupo, tudo o que escrevi foi convicção minha, neste segundo é uma certeza, uma vez que muitos dos stories e publicações que vejo, são de pessoas que eu conheço de alguma forma, logo, a hipocrisia se revela para mim como as algas da praia da Ribeira do Cavalo. São capazes de fazer um storie a apoiar um causa ou a manifestar determinada preocupação, e logo a seguir contradizerem-se com uma outra storie vulgar do seu dia-a-dia. Como por exemplo, partilhar uma imagem que manifesta uma preocupação pelo aquecimento global e na partilha seguinte uma fotografia sua no avião em direcção a Punta Cana; partilhar uma fotografia de uma mulher com pelos nas axilas, mostrando ser contra as convenções sociais impostas, e de seguida uma fotografia sua em bikini parecendo um autêntica barbie #afazerpraia; fazer um live participando numa manifestação contra as touradas no Campo Pequeno, e depois um storie com o seu menu no McDonalds’s do Saldanha. Enfim, tenho contradições para dar e vender, seriam precisas mais páginas só para isso.

Quem nunca caiu numa contradição que atire a primeira pedra. 

Eis que o problema não está em por vezes, sem nos apercebermos, acabarmos por ter práticas que não estão inteiramente alinhadas com aquilo que defendemos, ou por vezes, sermos alvo daquilo que nós próprios condenamos — não acredito em perfeição, acredito em aperfeiçoamento. Estou a referir-me apenas aos “políticos” e “activistas” de smartphone, que pregam a sua verdade com arrogância e superioridade moral, verdade essa muitas vezes emprestada por terceiros que fizeram o seu trabalho de casa (ou não), como por exemplo as celebridades e os influencers que seguem nos seus feeds. São também estas pessoas que ostracizam aqueles que não pensam igual a si, e que distorcem factos para incitar discurso do ódio. São os primeiros a desrespeitar o próximo quando confrontados com argumentos contrários, não apenas por se sentirem impotentes com o tamanho da sua ignorância, mas porque sentem que os elásticos que sustêm a sua máscara estão prestes a rebentar.

As redes sociais vieram abrir espaço para que todos nós possamos gritar ao mundo que existimos e o quão especiais somos. Fazemo-lo produzindo e partilhando conteúdos, ou participando em discussões políticas e sociais, mostrando que temos uma opinião e que defendemos causas nobres. Não tenho nada contra isso. Ainda bem que existe um espaço aberto para que todos possam partilhar os seus talentos, ou para que se possam expressar livremente, o problema é que muitos escolhem fazê-lo sem o mínimo esforço e pelas razões erradas. Escolhemos parecer algo que não somos no mundo virtual, para obter algo que não temos no mundo real.

Voltando ao activismo instantâneo. Parece-me claro que existe uma certa vaidade em se praticar o bem. Veste-se altruísmo para ficar na moda, como quem mete um filtro numa fotografia. Pessoalmente, não acredito em altruísmo. Fazer algo de positivo por terceiros é um acto egoísta, fazemo-lo porque nos sentimos bem connosco ao doar-nos. Não existe nada de errado nisso, pelo contrário, triste é fazê-lo e ainda sentir vaidade por isso.

“A vaidade é um principio de corrupção.”

Machado de Assis

20
Abr21

Quarenta Centímetros

Antes de mais, gostaria de reforçar que o texto que se segue não é sobre altruísmo. Além de uma reflexão, este texto é um testemunho sobre a minha experiência de doação de cabelo e sobre as razões que me motivaram a fazê-lo. Vejo neste meu simples gesto apenas uma forma de tornar a minha vida mais prática, de trabalhar questões como o apego e a vaidade, e de devolver o sorriso a uma criança.

Durante muitos anos, sobretudo na minha adolescência, fui confrontado com o que muitos de nós em alguma medida e nalguma fase da vida tivemos, problemas de auto-estima e de auto-aceitação. Crescer numa sociedade competitiva como a que vivemos, onde cada vez mais impera o culto da imagem e do corpo, e onde se define o belo e o feio através de modelos de comparação, é muitas vezes uma tarefa árdua e sofrida para muitas crianças e jovens-adolescentes. Se não tiverem uma estrutura familiar sólida e saudável durante o seu desenvolvimento, o conflito interno existente em muitas delas poderá acompanhá-las até na vida adulta. 

Existe uma pressão externa, influenciada pelos mídia e pelos supostos padrões de beleza, para nos enquadrarmos num determinado perfil estético e posteriormente nos sentirmos aceitos, dignos de amor, e de sucesso profissional. Essa pressão é ainda maior nos dias de hoje, na era dos clicks e polegares em que estamos todos conectados. Existem ferramentas digitais, como por exemplo as redes sociais, que vieram abrir um espaço onde todos se podem mostrar ao mundo na forma como desejariam ser vistos. Se por um lado, entre outras vantagens, elas vieram permitir a quem tem poucos recursos, a possibilidade de hoje divulgarem os seus trabalhos artísticos e/ou profissionais, por outro elas tornaram-se um autêntico circo de vaidades. 

Não querendo culpar o capitalismo de todos os males do mundo, visto que este não é uma identidade autónoma mas sim um sistema criado e alimentado pelo homem, não podemos negar que este é contraproducente na desconstrução de determinados estigmas, estereótipos, e preconceitos existentes na sociedade. Este sistema mantém aberto o espaço onde a beleza é um produto de consumo e de negócio, e como tal, as grandes indústrias através do marketing e da publicidade criam efeitos de sentido e operam na produção de verdades cristalizadas.

Na minha experiência pessoal, e como alguém que também sentiu na pele esse conflito interno durante a adolescência, fui fortemente influenciado pela cultura mediática e comecei a “adornar a alma com a beleza do corpo” quando deveria ser ao contrário. Comecei a identificar o meu Eu como corpo e a construir uma imagem que fosse socialmente aceita. Através das roupas, dos penteados, dos perfumes, e dos acessórios, encontrei uma forma de desviar das minhas imperfeições o foco do olhar alheio. Foi uma forma de camuflar a minha insegurança e sentimento de inferioridade, e de buscar uma sensação de igualdade para não me sentir rejeitado ou ofuscado pelo brilho dos outros. Depois de muitos anos a fazê-lo, dei por mim completamente escravo da vaidade e cada vez mais distante da minha verdadeira essência enquanto ser-humano. 

Se o meu objectivo fosse passar despercebido diria que fui uma espécie de camaleão, mas como o efeito pretendido era precisamente o oposto, mudei mais vezes de estilo do que um camaleão muda de cor em toda a sua vida. Essa inconstância é uma das silenciosas consequências do capitalismo, que fomenta a constante insatisfação e que nos impele a consumir cada vez mais em busca do novo e do melhor. Uma espiral sem fim que força o mundo a uma mutação cada vez mais acelerada, tornando-se cada vez mais difícil ao ser-humano conseguir acompanhar. 

Quem me conhece, ou de alguma forma tem acompanhado este blogue, terá uma ideia do quão importante foram os vinte oito anos para mim. Foi uma altura de viragem na minha vida e o início de uma viagem consciente de autoconhecimento, e uma das consequências naturais desse processo foi a libertação da vaidade que sentia e dessa identificação como corpo. 

A palavra vaidade tem sua origem do latim vanitas, vanitatis - cujo significado é “vacuidade; inutilidade; inconstância; futilidade; orgulho vão, o que é próprio do vácuo”, ou seja: vazio!”

Actualmente, não uso perfumes nem desodorantes, a roupa que tenho é escolhida tendo em conta a sua utilidade, priorizando a qualidade em detrimento da quantidade, e se me virem com algum acessório é porque ele carrega algum valor simbólico para mim. Não estou com isto a dizer que este é o modelo a seguir, é simplesmente o modelo que me serve e que hoje faz-me sentido. Não posso também afirmar que me libertei dessa vaidade por completo, e embora esteja a referir-me a ela num nível estético, esta também se pode manifestar num nível intelectual — ambas estão associadas ao nosso ego e trabalhar isso é um longo processo. 

Ultimamente, e em tom de brincadeira, costumava afirmar que em tempos fui um homem muito vaidoso e que hoje a minha única vaidade está no meu cabelo. Se por um lado acreditava nessa afirmação, por outro, sinto que não há nada de supérfluo em cuidar daquilo que já é nosso por natureza. Da mesma maneira que o ser humano deve descobrir, cuidar e trazer à tona o que de mais belo tem da sua natureza interna, o mesmo deve poder fazê-lo com a sua natureza externa — o seu corpo. Cuidar da nossa imagem não é ser escravo dela, se assim for, seremos só maquilhagem.

O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em acção.

Fernando Pessoa

A manutenção do bem estar físico e psicológico exige que cuidemos do nosso corpo e da nossa mente. Se ambos forem alimentados de forma consciente e equilibrada isso refletir-se-á naturalmente na nossa imagem. Adornar o corpo não reflecte a nossa alma, apenas disfarça o nosso vazio. 

Antes de testemunhar a experiência enquanto dador de cabelo, fiz esta longa reflexão por acreditar que ela tem uma profunda ligação a este meu gesto.

 

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Há cerca de 6 anos decidi voltar a deixar crescer o cabelo. Cansado de usar cera modeladora para afastá-lo da vista, de testar penteados que me favorecessem, de frequentar barbeiros, e de conversas de circunstância que lá se fazem, cheguei à conclusão que resolveria esse assunto deixando-o simplesmente crescer. Como já o tinha feito duas vezes no passado, embora por menos tempo, sabia que por herança genética tinha um tipo de cabelo que crescia rápido, forte e saudável. O próprio parecia pedir-me que não lhe apresentasse tesouras, tendo em conta as suas características. Em seis anos fi-lo apenas por duas vezes e só para cortar as pontas, tirando isso, não fazia planos para definir um limite de tamanho. 

Usando apenas um sabonete natural e uma solução de vinagre com água nas lavagens, e somente uma vez por semana, cuidar dele estava a tornar-se uma tarefa muito complicada. Para além do embaraço que era por vezes o simples vestir de um casaco, os nós que apareciam quando usava camisolas de capuz, ou as vezes em que o cabelo se prendia na porta do carro, tratar dele exigia muito tempo no banho, muita água e muita paciência para o pentear e desembaraçar. Para não falar do tempo que gastava nos dias de chuva em que precisava sair de casa e me via obrigado a usar o secador. 

Ao fim de tantos anos a cuidar dele, desenvolvi uma espécie de apego. Só de pensar em cortá-lo sentia como se me tivessem a arrancar um membro, e ironicamente cheguei a ter alguns pesadelos com isso. No mínimo estranho confesso.

Eu sabia que a qualidade do meu cabelo e o seu tamanho era algo incomum num homem, razão de ter sido inúmeras vezes elogiado e cobiçado. Se uma parte de mim gostava dessa atenção, a outra parte sentia-se desconfortável — era uma sensação agridoce. No entanto, a parte que gostava teve impacto na hora de colocar os aspectos positivos e negativos na balança antes de tomar esta decisão — não seria honesto se dissesse o contrário. Ocorreram-me pensamentos limitantes de que, se o cortasse, perderia também uma característica estética que me diferenciava e atraía o olhar alheio. Era tudo sinal de resistência ao abandono do que ainda me restava da velha vaidade. 

Para além disso, houve também um factor de carácter simbólico que pesou na minha decisão. Existe em mim um certo fascínio pelos povos indígenas, pela sua cultura, pelos simbolismos que carregam, e sobretudo pela relação simbiótica que mantêm com a natureza. Desejando entender porque razão sentia que se cortasse o cabelo perderia uma parte da minha força vital, descobri que para os chefes indígenas o cabelo longo era um prolongamento do sistema nervoso, o que lhes dava a capacidade de sentir melhor a presença de estranhos. Segundo alguns cientistas, o cabelo é composto por fios sensitivos, eles transmitem uma série de informações ao cérebro e ao sistema límbico, parte responsável pelas emoções. Não espero que me entendam nesta última parte, mas não seria um fiel testemunho se não o partilhasse.

Há alguns anos, através da experiência pessoal de um conhecido de infância, também partilhada nas redes sociais, fiquei a saber que era possível doar cabelo com a finalidade de serem produzidas cabeleiras destinadas a doentes oncológicos. A maior parte dos portadores de doenças oncológicas, como por exemplo o cancro, perdem parcialmente o seu cabelo durante os tratamentos, e se estes forem mais agressivos, dependendo do tipo de cancro e da sua extensão, chegam mesmo a perder a sua totalidade. Ao saber disso, mentalizei-me que se um dia voltasse a ter cabelo comprido esse seria o seu destino, e não um caixote do lixo onde por duas vezes acabou desperdiçado.

Quando comecei finalmente a equacionar a hipótese de cortar o cabelo, com setenta centímetros de comprimento e no limiar da minha paciência, lembrei-me desta antiga promessa. Se a praticidade que ganharia no meu dia-a-dia, ou a leveza que sentiria após esse desapego não eram ainda motivações suficientes, o saber que essa acção poderia devolver um sorriso a uma criança tinha de ser uma prioridade no meu pensamento. Comecei por procurar informações a respeito enquanto os cabeleireiros se mantinham fechados, devido às restrições em vigor na sequência da pandemia, e assim que reabriram dei então o primeiro passo, e também o maior, em direcção ao cumprimento desta minha promessa.

Em Portugal, onde gostaria de tê-lo feito, era possível doar o nosso cabelo à Liga Portuguesa Contra o Cancro ou entregar diretamente no IPO (Instituto Português de Oncologia), até que em 2015 anunciaram publicamente que deixariam de receber doações por falta de necessidade. No entanto, a partir das pesquisas que fiz, tomei conhecimento que existem várias associações internacionais, quer na Europa, quer em outras partes do mundo, que aceitam doações para a mesma finalidade. O tamanho das mechas de cabelo pretendido pela maioria das associações, são no mínimo 30 cm de comprimento, sendo que algumas aceitam um pouco menos. Podemos encontrar nos respectivos sites estas informações mais detalhadas e as indicações de como fazê-lo, pois existem alguns requisitos que precisam ser atendidos para que os cabelos doados sejam legíveis para elaboração de cabeleiras. (Ver link) É possível que algumas doações não venham a ser utilizadas, e esse foi o meu maior receio. Ainda assim, entre a dúvida do seu aproveitamento e a certeza do seu desperdício, é preferível a primeira. Deitar no lixo pela terceira vez estava fora de questão. 

Recomendado por uma amiga, o que me facilitou na escolha, enviei o meu cabelo para Little Princess Trust, uma associação que distribui cabeleiras gratuitamente a crianças e jovens até aos 24 anos, que perderam o cabelo devido a tratamentos contra o cancro ou outras doenças. Para além disso, esta associação tem apoiado o desenvolvimento de tratamentos do cancro menos agressivos e tóxicos, e colaborado para o aprofundamento da pesquisa das causas e do tratamento do cancro infantil.

Bem sei que este gesto em nada contribui para a cura da doença, pelo menos de uma forma directa, mas irá certamente contribuir para que uma criança ou um/a jovem possa recuperar parte da sua auto-estima e voltar a sorrir — o cabelo não cura, mas um sorriso pode ajudar. Acredito que o amor e a alegria são ingredientes indispensáveis para ajudar a vencer qualquer batalha. Numa sociedade como a que aqui descrevi, ter cabelo ganha um peso ainda maior no desenvolvimento de uma criança, e neste caso, não é um sentimento de vaidade, é um sentimento de pertença.

Posto isto, devo dizer-vos que não me custou absolutamente nada tê-lo feito, foi fácil e indolor. Todas as questões que levantei na indecisão de cortar o cabelo caíram por terra quando colocadas ao lado das questões de quem não o tem. Embora hoje sinta que essas minhas preocupações de indecisão eram banais, é perfeitamente natural e legítimo que as tenha tido. É legítimo que uma pessoa não se sinta segura em fazer o mesmo com seu cabelo, e está tudo bem, não se deve sentir culpada por isso. Seja um desafio, uma decisão, uma dor, ou um sofrimento, nenhum deles deve ser medido ou minimizado por comparação com o do outro. A intensidade das coisas depende muito da natureza, da bagagem, e do estado emocional de cada um.

Para concluir, devo dizer-vos que não me senti melhor pessoa depois desta experiência, senti-me sim mais leve e mais liberto, com menos quarenta centímetros de cabelo, de vaidade, e de apego. E na mesma medida, senti-me feliz por saber que esse pequeno gesto significará um grande sorriso no rosto de alguém.

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