Não estaremos apressados a julgar Dalai Lama?
Ontem lancei esta questão num grupo de WhatsApp onde estão pessoas muito sensatas e inteligentes, muitas das quais eu nem sequer conheço. Um lugar onde posso discutir temas controversos e fazer perguntas como esta, sem ser apedrejado em praça pública como Maria Madalena. No final do dia, depois de um longo debate, dei por mim a pensar que deveria trazer o meu ponto de vista para este lugar, assumindo os riscos que isso possa trazer.
Antes de mais quero deixar claro que me considero um ateu agnóstico, não tenho devoção a nenhum deus, a nenhum santo, e a nenhum homem. Apesar de existirem no mundo raras pessoas por quem nutro uma enorme admiração, pela sabedoria das suas palavras e nobreza das suas acções, não me curvo a nenhum deles como se de uma divindade se tratasse. A experiência da vida ensinou-me a seguir ideias e não pessoas.
Depois de saber da notícia, e de ter visto o polémico vídeo, fiquei incrédulo com a velocidade com que nos movemos virtualmente para condenar alguém publicamente. Já me dizia o meu pai que o ser humano passa de bestial a besta num estalar de dedos. É imensurável a quantidade de ofensas e o discurso de ódio dirigido ao 14º Dalai Lama, um homem com um percurso notável, que fez pelos direitos humanos, e pela paz no mundo, mais do que milhares de activistas de internet todos juntos, e que agora, por um gesto isolado, mas infeliz aos olhos da maioria, vê enterrado todo o seu percurso na gigante sombra de um erro, e taxado como pedófilo à velocidade da luz.
Neste momento estão a acontecer no mundo coisas bem mais trágicas e desumanas, mas os holofotes apontaram para este acontecimento que se deu no dia 28 de Fevereiro, no decorrer de uma cerimónia transmitida globalmente a partir de Tsukla Khan, o principal templo da cidade de Dharamsala, mas só há cerca de quatros dias tomámos conhecimento, através de um vídeo publicado e difundido massivamente pelo mundo virtual — isto é no mínimo estranho.
Aos meus olhos, com a minha educação, minha visão de mundo, e dimensão em que vibro, a minha experiência não foi muito diferente do que a grande maioria. Não foi uma imagem que digeri com facilidade, e compreendo que se ache perigoso nos tempos que correm, em que cada vez mais vemos revelados casos de pedofilia dentro de instituições religiosas. Na verdade, o meu primeiro pensamento quando vi o vídeo foi: “Olha! Mais um a quem lhe caiu a máscara”, pois quem me conhece, sabe que tenho um olhar critico no que toca à religião, líderes espirituais, gurus, life coaches, livros de auto-ajuda, e tudo o que de alguma forma esteja ligado ao metafísico e ao abstracto, que não explicado pela ciência pode facilmente ser usado para mover massas para fins menos nobres, como alguns casos polémicos de líderes espirituais como o de Sri Prem Baba e o do Osho.
No entanto, tendo o mínimo conhecimento do percurso do Dalai Lama, achei que seria demasiado precipitado fazer um julgamento ao primeiro impulso, dentro da minha matriz de pensamento e dos limites da minha compreensão, antes de sequer tentar ver a questão em perspectivas várias, e de tentar perceber o contexto em que isto aconteceu. Isso não é sinónimo de procurar desculpas para legitimar o quer quer seja, é querer entender um pouco mais para saber como me posicionar. Nem tudo é aquilo que nos parece, por mais óbvio até que nos pareça.
Ao contrário do que pintam nas redes sociais, o Dalai Lama não violou sexualmente uma criança. Sim! Ele cometeu um erro aos olhos da nossa sociedade, em público, que em muitos outros casos, e em privado, poderia escalar para coisas mais graves e abomináveis. Mas até agora, o que sabemos é o que vimos, e o que vimos não é razão para odiar e condenar um ser humano a este nível, sobretudo alguém com o seu historial, que embora não lhe conceda impunidade, devemos ter algum cuidado nas conclusões que tiramos.
Todos nós cometemos erros, uns mais graves do que outros, somos falíveis e nenhuma religião nos blinda disso, nem mesmo a um líder espiritual, que apesar de ser adorado como figura divina ainda continua a ser apenas uma pessoa. Quanto mais endeusamos alguém, mais perfeição e verdade vamos exigir dela, porém, devo relembrar-vos que nem uma coisa nem outra existem — são duas montanhas que todos devemos aspirar escalar, mas nunca chegaremos a colocar uma bandeira no seu pico, porque ambas são infinitas. Só conhecemos Jesus na Bíblia, mas se este vivesse no nosso tempo e com a exposição mediática que teria, haveria também a hipótese de algum gesto seu menos feliz, ou incompreendido, ser filmado e visto com repugnância aos olhos do mundo inteiro, que rapidamente o crucificaria tal como fizeram os romanos.
Posso estar profundamente enganado, e engulo todas as minhas palavras se um dia se descobrir o seu nome envolvido em casos de pedófila, mas com base no que apenas vi neste vídeo, não me parece que haja motivações sexuais no seu acto. O beijo na boca da criança, tem um significado simbólico diferente tanto no Tibete, como em muitas outras culturas, por mais que aos nossos olhos seja visto com alguma aversão, assim como muitas outras práticas que nós não compreendemos. O nosso cérebro é muito rápido a criar associações com imagens que temos no subconsciente, reagimos logo à mínima semelhança com algo que nos causa repulsa, e nós temos bem presentes na memória os escândalos de pedofilia dentro da nossa sociedade. Para muitos de nós, até a simples imagem de um idoso com uma criança ao colo nos pode causar algum sentimento de desconfiança. Não é verdade!?
Em relação ao “Suck my tongue”, um possível erro de interpretação e tradução da língua oficial para o inglês, não me parece que Dalai Lama desejasse realmente que a criança o fizesse, foi provavelmente mais uma das suas saídas aleatórias que muitas vezes tem com os que lhe rodeiam, uma forma espontânea de provocar um riso no outro. Se virem o vídeo com muita atenção, e observarem a linguagem corporal, e as expressões faciais, perceberão que quando a criança, constrangida, avança com a língua de fora em direcção à de Dalai Lama, este imediatamente recolhe a sua, afasta o rosto, e dá-lhe uma palmadinha no peito.
Eu compreendo a indignação e a repulsa que as pessoas sentem, mas a pressa e o ódio explícito no julgamento online parece-me um sentimento muito tribalista, um movimento em que todos querem fazer parte, exaltando a sua moralidade em público. É um exercício muito raso e que dá muito pouco trabalho. Nós não temos de ter opinião sobre tudo, e se fazemos questão disso, então devemos reunir o máximo informação possível antes de tirar as nossas conclusões. Parece-me claro que estamos mais aptos e prontos a destruir do que a contribuir positivamente para a mudança e construção de um mundo melhor.
Mesmo que possa ter sido uma brincadeira inocente, como eu acho que foi, é um gesto globalmente inaceitável pelas razões que já referi. Mas, embora o uso do julgamento prematuro, e da manifestação de ódio, surjam com a aparência de solução para provocar mudanças, estas são na verdade acções contraproducentes — além de não produzirem resultados efectivos, deixam mazelas muito profundas na humanidade.
Não estou aqui a sugerir todos devem compreendamos a natureza do gesto, ou a apelar à sua relativização, e tampouco a sugerir que viremos a cara ao sucedido, pelo contrário, devemos estar atentos e expor a nossa posição quando vai contra os nossos valores, mas primeiro, sejamos mais sensatos e respiremos fundo antes de reagir — de caos está o mundo cheio.