Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

14
Abr23

Não estaremos apressados a julgar Dalai Lama?

Ontem lancei esta questão num grupo de WhatsApp onde estão pessoas muito sensatas e inteligentes, muitas das quais eu nem sequer conheço. Um lugar onde posso discutir temas controversos e fazer perguntas como esta, sem ser apedrejado em praça pública como Maria Madalena. No final do dia, depois de um longo debate, dei por mim a pensar que deveria trazer o meu ponto de vista para este lugar, assumindo os riscos que isso possa trazer.

Antes de mais quero deixar claro que me considero um ateu agnóstico, não tenho devoção a nenhum deus, a nenhum santo, e a nenhum homem. Apesar de existirem no mundo raras pessoas por quem nutro uma enorme admiração, pela sabedoria das suas palavras e nobreza das suas acções, não me curvo a nenhum deles como se de uma divindade se tratasse. A experiência da vida ensinou-me a seguir ideias e não pessoas.

Depois de saber da notícia, e de ter visto o polémico vídeo, fiquei incrédulo com a velocidade com que nos movemos virtualmente para condenar alguém publicamente. Já me dizia o meu pai que o ser humano passa de bestial a besta num estalar de dedos. É imensurável a quantidade de ofensas e o discurso de ódio dirigido ao 14º Dalai Lama, um homem com um percurso notável, que fez pelos direitos humanos, e pela paz no mundo, mais do que milhares de activistas de internet todos juntos, e que agora, por um gesto isolado, mas infeliz aos olhos da maioria, vê enterrado todo o seu percurso na gigante sombra de um erro, e taxado como pedófilo à velocidade da luz.

Neste momento estão a acontecer no mundo coisas bem mais trágicas e desumanas, mas os holofotes apontaram para este acontecimento que se deu no dia 28 de Fevereiro, no decorrer de uma cerimónia transmitida globalmente a partir de Tsukla Khan, o principal templo da cidade de Dharamsala, mas só há cerca de quatros dias tomámos conhecimento, através de um vídeo publicado e difundido massivamente pelo mundo virtual — isto é no mínimo estranho.

Aos meus olhos, com a minha educação, minha visão de mundo, e dimensão em que vibro, a minha experiência não foi muito diferente do que a grande maioria. Não foi uma imagem que digeri com facilidade, e compreendo que se ache perigoso nos tempos que correm, em que cada vez mais vemos revelados casos de pedofilia dentro de instituições religiosas. Na verdade, o meu primeiro pensamento quando vi o vídeo foi: “Olha! Mais um a quem lhe caiu a máscara”, pois quem me conhece, sabe que tenho um olhar critico no que toca à religião, líderes espirituais, gurus, life coaches, livros de auto-ajuda, e tudo o que de alguma forma esteja ligado ao metafísico e ao abstracto, que não explicado pela ciência pode facilmente ser usado para mover massas para fins menos nobres, como alguns casos polémicos de líderes espirituais como o de Sri Prem Baba e o do Osho.

No entanto, tendo o mínimo conhecimento do percurso do Dalai Lama, achei que seria demasiado precipitado fazer um julgamento ao primeiro impulso, dentro da minha matriz de pensamento e dos limites da minha compreensão, antes de sequer tentar ver a questão em perspectivas várias, e de tentar perceber o contexto em que isto aconteceu. Isso não é sinónimo de procurar desculpas para legitimar o quer quer seja, é querer entender um pouco mais para saber como me posicionar. Nem tudo é aquilo que nos parece, por mais óbvio até que nos pareça.

Ao contrário do que pintam nas redes sociais, o Dalai Lama não violou sexualmente uma criança. Sim! Ele cometeu um erro aos olhos da nossa sociedade, em público, que em muitos outros casos, e em privado, poderia escalar para coisas mais graves e abomináveis. Mas até agora, o que sabemos é o que vimos, e o que vimos não é razão para odiar e condenar um ser humano a este nível, sobretudo alguém com o seu historial, que embora não lhe conceda impunidade, devemos ter algum cuidado nas conclusões que tiramos.

Todos nós cometemos erros, uns mais graves do que outros, somos falíveis e nenhuma religião nos blinda disso, nem mesmo a um líder espiritual, que apesar de ser adorado como figura divina ainda continua a ser apenas uma pessoa. Quanto mais endeusamos alguém, mais perfeição e verdade vamos exigir dela, porém, devo relembrar-vos que nem uma coisa nem outra existem — são duas montanhas que todos devemos aspirar escalar, mas nunca chegaremos a colocar uma bandeira no seu pico, porque ambas são infinitas. Só conhecemos Jesus na Bíblia, mas se este vivesse no nosso tempo e com a exposição mediática que teria, haveria também a hipótese de algum gesto seu menos feliz, ou incompreendido, ser filmado e visto com repugnância aos olhos do mundo inteiro, que rapidamente o crucificaria tal como fizeram os romanos.

Posso estar profundamente enganado, e engulo todas as minhas palavras se um dia se descobrir o seu nome envolvido em casos de pedófila, mas com base no que apenas vi neste vídeo, não me parece que haja motivações sexuais no seu acto. O beijo na boca da criança, tem um significado simbólico diferente tanto no Tibete, como em muitas outras culturas, por mais que aos nossos olhos seja visto com alguma aversão, assim como muitas outras práticas que nós não compreendemos. O nosso cérebro é muito rápido a criar associações com imagens que temos no subconsciente, reagimos logo à mínima semelhança com algo que nos causa repulsa, e nós temos bem presentes na memória os escândalos de pedofilia dentro da nossa sociedade. Para muitos de nós, até a simples imagem de um idoso com uma criança ao colo nos pode causar algum sentimento de desconfiança. Não é verdade!?

Em relação ao “Suck my tongue”, um possível erro de interpretação e tradução da língua oficial para o inglês, não me parece que Dalai Lama desejasse realmente que a criança o fizesse, foi provavelmente mais uma das suas saídas aleatórias que muitas vezes tem com os que lhe rodeiam, uma forma espontânea de provocar um riso no outro. Se virem o vídeo com muita atenção, e observarem a linguagem corporal, e as expressões faciais, perceberão que quando a criança, constrangida, avança com a língua de fora em direcção à de Dalai Lama, este imediatamente recolhe a sua, afasta o rosto, e dá-lhe uma palmadinha no peito.

Eu compreendo a indignação e a repulsa que as pessoas sentem, mas a pressa e o ódio explícito no julgamento online parece-me um sentimento muito tribalista, um movimento em que todos querem fazer parte, exaltando a sua moralidade em público. É um exercício muito raso e que dá muito pouco trabalho. Nós não temos de ter opinião sobre tudo, e se fazemos questão disso, então devemos reunir o máximo informação possível antes de tirar as nossas conclusões. Parece-me claro que estamos mais aptos e prontos a destruir do que a contribuir positivamente para a mudança e construção de um mundo melhor.

Mesmo que possa ter sido uma brincadeira inocente, como eu acho que foi, é um gesto globalmente inaceitável pelas razões que já referi. Mas, embora o uso do julgamento prematuro, e da manifestação de ódio, surjam com a aparência de solução para provocar mudanças, estas são na verdade acções contraproducentes — além de não produzirem resultados efectivos, deixam mazelas muito profundas na humanidade.

Não estou aqui a sugerir todos devem compreendamos a natureza do gesto, ou a apelar à sua relativização, e tampouco a sugerir que viremos a cara ao sucedido, pelo contrário, devemos estar atentos e expor a nossa posição quando vai contra os nossos valores, mas primeiro, sejamos mais sensatos e respiremos fundo antes de reagir — de caos está o mundo cheio.

29
Jan22

Será activismo ou mediatismo? Talvez ambos.

Recentemente, a psicóloga Joana Amaral Dias, também activista, comentadora e colunista política, decidiu abordar no seu programa “A Nova Variante”, apresentado em directo na sua conta de Instagram às quartas-feiras, as medidas de controlo da pandemia, sobretudo a que indica obrigatoriedade de apresentação de certificado digital no acesso a determinados estabelecimentos. Neste episódio, num formato pouco habitual, enalteceu a sua resistência face a esta medida, ilustrando juntamente com um grupo de amigos, como deveriam proceder aqueles que, por falta de certificado, estão inibidos de frequentar o interior dos restaurantes. O resto já todos sabem certamente.

Guardo pela psicóloga todo o meu respeito, e até alguma consideração pela sua ousadia em defender publicamente as suas ideias, muitas vezes contrárias ao status quo vigente na sociedade. Reconheço-lhe igualmente o papel fundamental que tem tido no apoio ao jornalismo independente, que tem revelado as falhas da história que nos tem sido narrada pelos principais órgãos de comunicação social e pelo governo. Digamos que, de um modo geral, tenho apreço pelas questões que põe em cima da mesa, e partilho até de algumas ideias que defende, porém, raramente concordo com a metodologia que frequentemente utiliza para fazê-lo. 

Mais uma vez, o mesmo se verifica neste episódio do seu programa, em que me sinto alinhado com os valores defendidos, mas não com a sua conduta, nem com a forma como abordou o tema. Não querendo ofender qualquer interveniente do vídeo em questão, considero que a motivação do mesmo foi algo imatura e superficial. Todos os procedimentos foram feitos em um ambiente controlado, e o facto de terem realizado o pedido na modalidade take-away revelou isso mesmo, quando a intenção era permanecer no interior do restaurante. Pareciam querer provocar um pouco de alarido, mas não o suficiente para se verem numa iminente situação de impotência. Espero estar errado, mas desse modo, comprometeram não só a oportunidade de provocar uma reflexão profunda nas pessoas, como também a de mostrar efectivamente, num cenário mais rígido, como estas poderão actuar de forma prática e legal, caso se dignem a entrar num estabelecimento público sem o dito certificado.

Em tempos escrevi um artigo neste blogue sobre o uso do activismo, abraçado com as redes sociais, como uma ferramenta de busca por aprovação social. Foi-me difícil dissociar essa ideia, da intenção deste vídeo que me pareceu muito mais sobre mediatismo do que sobre activismo. Tenho dúvidas de que esta seja a via mais adequada na luta pelas liberdades individuais, e pelas causas outras que habitualmente costuma defender. Creio existir aqui um levantar de bandeira que considero ser uma atitude contraproducente, apenas promove o separatismo e o tribalismo. Não Estar vacinado é uma condição voluntária, não é uma camisola, e muito menos um clube.

Quando nos rebelamos contra algo, devemos preservar o nosso estado de consciência, porque se formos demasiado passionais nas nossas acções, facilmente perdemos o equilíbrio e nos tornamos primitivos. É preciso ter cuidado com o poder que as pessoas nos atribuem quando defendemos afincadamente as nossas posições em público, porque à medida que esse poder cresce, aumenta também a probabilidade de cairmos na tentação de querermos ser o messias do povo. Nenhum homem carrega verdades absolutas, e essa é a principal razão pela qual sigo ideias, e não sigo pessoas.

Pessoalmente, na minha condição naturalmente assumida de não vacinado “contra” a COVID-19, embora tenha o boletim de vacinas em dia, prefiro estar rodeado de pessoas onde sou bem recebido, e frequentar apenas lugares onde sou bem-vindo. Nenhum cliente que seja mal servido, ou mal recebido, em determinado estabelecimento, voltará a frequentar tal espaço, a menos que seja por benefício da dúvida. Assim era antes de a ONU ter declarado a existência de uma pandemia, e assim continuará a ser, a única diferença é que agora sabemos de antemão se somos ou não bem-vindos num determinado sitio.

Não vejo utilidade alguma em impingir a minha presença quando ela não é vista com bom olhos, salvo raras excepções, em que tal insistência seja imprescindível para minha sobrevivência, como por exemplo em instituições de serviços públicos, farmácias, hospitais, e supermercados. Se um dia chegarmos a tal ponto em que eu seja privado de frequentar tais lugares, talvez aí a minha natureza primitiva ganhe mais força, pois entre a morte e a vida, eu prefiro a vida, e não garanto inteira sanidade se por ela estiver a lutar. 

Enquanto esta discriminação estiver reservada a espaços culturais, lazer nocturno, ou de restauração, eu passo bem, existem muitas outras opções para me satisfazer a um nível lúdico e intelectual. É claro, não sou egoísta ao ponto de pensar que está tudo bem com esta privação selectiva porque esta ainda não me atingiu. Bem sei, que muitas pessoas estão a ser prejudicadas noutros lugares de grande importância na sociedade, como é o caso de alguns locais de trabalho e de algumas instituições de ensino. Nesses espaços sim, seria útil, e com maior sobriedade, filmar uma experiência social do género da que vimos neste episódio que decorreu no McDonald’s do Marquês de Pombal.

Se algumas mentes mais polarizadas, que possam eventualmente ter lido este texto, se sentiram um pouco confusas quanto à minha posição, com todo o respeito vos peço, que não se apressem a tentar colocar-me numa caixinha, que se libertem da preguiça de pensar, e pratiquem o exercício de ver o mundo a cores. O convite à reflexão é o verdadeiro motivo de eu comentar, com toda a imparcialidade, as acções praticadas pelos intervenientes deste episódio do programa A Nova Variante. Não é, nem se propõe ser, um ataque à autora do mesmo, uma vez que nada lhe tenho contra, bem pelo contrário. 

 

01
Dez21

Activismo + Redes sociais = Aprovação social

Podia bem ficar-me pelo título. Não é lá grande fórmula, tampouco uma invenção, mas funciona. Dispensa todo e qualquer esforço em expressar por palavras a reflexão que se segue. Tenho a certeza que se a colocasse sobre uma imagem de fundo e partilhasse na minha conta de instagram, renderia uns quantos Likes e partilhas, até mais do que este texto (talvez faça a experiência). As frases bonitas estão na moda, enquanto os livros nem por isso, de onde muitas vezes elas são retiradas. A demanda por conteúdo de fácil e rápida digestão está a aumentar em flecha, e com isso, o número de “produtores de nada” também. Mas vamos ao que interessa.

 

SLACKTIVISM.png

 

Considero que existe uma diferença entre pessoas ilustres, famosos, e influencers. Estes últimos, os mais recentes, tendem a fundir-se com o título de famosos, já pouco os distingue na verdade. Um famoso que não se torne influencer morre na praia, e um influencer que não seja famoso terá exactamente o mesmo destino. Já os ilustres, que se distinguem por mérito próprio, pela sua excelência e pelas suas capacidades, sobrevivem sem a necessidade de seduzir potenciais seguidores. 

O poder mediático dos ilustres nasce do reconhecimento dos seus feitos e das suas obras, o dos famosos pode nascer de variadíssimas formas, como cair de um skate ou aparecer num reality show, e o dos influencers, nasce do nada. Enquanto nos primeiros, o trabalho é o seu principal foco e o seu reconhecimento apenas uma consequência, nos dois últimos as prioridades estão invertidas. A todo momento têm de se reinventar e explorar novas formas de se manterem na ribalta, porque aquilo que os ascendeu é de tal forma frágil e efémero, que não os sustém na linha da frente por muito tempo. 

As redes sociais tornaram-se numa arena onde todos competem pela atenção do público. As regras do jogo mudaram. Devido ao surgimento do algoritmo e do seu constante aperfeiçoamento, plataformas como o instagram, que antes mostravam no feed de cada utilizador, e por ordem cronológica, todos os conteúdos publicados pelas pessoas que estes seguiam, hoje filtram esses mesmos conteúdos de acordo com uma série de critérios, fazendo com que muitos deles fiquem pelo caminho.

Alguns ilustres aproveitaram a sua notoriedade, isto é, o seu poder, para dar voz, nestas plataformas, a causas sociais com as quais estão genuinamente engajados. Já os famosos e os Influencers, ao perceberem que mostrando preocupações sociais podiam aumentar a sua popularidade entre as massas, passaram também a fazê-lo, gerando assim “conteúdo” que se torna viral, e que os torna a eles próprios notícias de jornal, de revistas cor-de-rosa e tema de conversa em programas de televisão — um pouco à semelhança das pessoas que fazem donativos generosos a instituições para escapar dos pesados impostos. Não é que eu tenha propriamente algo contra isso, ainda bem para as instituições e para os beneficiários. A verdadeira questão é que nem tudo é o que se faz parecer.

No que toca aos donativos monetários, a motivação de cada pessoa pode ser diferente, mas o resultado desse gesto é o mesmo independentemente de quem o faça. Já nas campanhas de sensibilização online, aí o resultado não é efectivamente o mesmo. Quando a intenção é ser falado e ficar bem visto, a sua campanha será algo sem substância, cujo impacto no público será efémero e insuficiente para causar reflexão — trata-se apenas de propaganda e sensacionalismo. Uma publicação ou storie à la activista, no meio de muitas outras sobre coisas triviais, é uma gota no oceano que rapidamente se evapora. Faz-me lembrar alguns políticos e associações quando inauguram projectos sociais ou ambientais, aparentemente inovadores, que depois de ganharem prémios e darem boas machetes na comunicação social, decidem mudar a página e deixar cair esses mesmos projectos por falta de investimento.

Hoje, podemos observar um enorme desequilíbrio no mundo, quer a nível ambiental, quer a nível espiritual. Estamos cada vez mais divididos e polarizados, e muito se deve ao algoritmo do mundo digital que favorece a criação de bolhas sociais. Numa altura em que questões como a crise ambiental, o racismo, a igualdade de género, os direitos dos animais, os direitos da comunidade LGBTI, entre outros, têm dominado a internet e consequentemente os media, os famosos e influencers perceberam que a ostentação de beleza e riqueza, que faziam com maior frequência, não lhes ficaria muito bem no mundo actual. Além disso, podem correr o risco de não saírem de um certo nicho de pessoas, ou até mesmo de serem cancelados. O mesmo podemos observar nas empresas, que hoje se sentem forçadas a repensar a forma como se apresentam no mercado, e como fabricam e vendem os seus produtos ou serviços. Vestem a capa de empresas verdes, mostram preocupações ambientais e sociais, e adotam práticas mais sustentáveis e humanas para não serem alvo de processos, nem apanhados em escândalos que poderão comprometer a sua cotação na bolsa. Relembremos, é apenas uma capa na maior parte dos casos.

Para ser mais preciso, estas pessoas já não procuram apenas likes e seguidores, procuram também sentir que são especiais e mostrar que fazem a diferença no mundo — já não é cool ser-se apenas famoso. É preciso ser-se activista e filantropo, para garantirmos o nosso lugar no céu e sentirmo-nos como uma espécie de Madre Teresa de Calcutá. Carregam a pretensão de querer mudar o mundo e de influenciar as massas, enquanto no backstage são o oposto daquilo que pregam, e onde por vezes são apanhados na curva. Querem ser Gretas e Malalas com apenas um quinto do esforço e da renúncia que estas têm de fazer diariamente, assim como muitas outras vozes activas pelos direitos humanos e pelo meio ambiente.

Durante o período de confinamento a que todos fomos submetidos no âmbito da pandemia, observei que muitas das pessoas cuja vida profissional depende do público, e que foram muito prejudicadas, como por exemplo a classe artística e cultural, aproveitaram o tempo livre para se dedicarem mais ao activismo fast-food. Frequentemente faziam lives e publicações nas suas redes a defender causas pelas quais tinham alguma simpatia, ou nas quais se reviam. Para mim, foi notório a falta de profundidade no que defendiam, e em muitos casos, completamente desalinhados daquilo que habitualmente representam. Foi um claro aproveitamento dos temas que pontualmente dominavam os noticiários em todo o mundo, para poderem fazer conteúdo e assim manterem a sua popularidade. 

Embora o que me tenha motivado a escrever sobre este tema tenha sido as capas de beatice e moralismo que observei nas pessoas que dominam a atenção do público nas redes sociais, esta prática estende-se a todo e qualquer utilizador comum que tenha uma conta numa destas plataformas. Neste grupo o cenário de hipocrisia é ainda mais visível. Se em relação ao primeiro grupo, tudo o que escrevi foi convicção minha, neste segundo é uma certeza, uma vez que muitos dos stories e publicações que vejo, são de pessoas que eu conheço de alguma forma, logo, a hipocrisia se revela para mim como as algas da praia da Ribeira do Cavalo. São capazes de fazer um storie a apoiar um causa ou a manifestar determinada preocupação, e logo a seguir contradizerem-se com uma outra storie vulgar do seu dia-a-dia. Como por exemplo, partilhar uma imagem que manifesta uma preocupação pelo aquecimento global e na partilha seguinte uma fotografia sua no avião em direcção a Punta Cana; partilhar uma fotografia de uma mulher com pelos nas axilas, mostrando ser contra as convenções sociais impostas, e de seguida uma fotografia sua em bikini parecendo um autêntica barbie #afazerpraia; fazer um live participando numa manifestação contra as touradas no Campo Pequeno, e depois um storie com o seu menu no McDonalds’s do Saldanha. Enfim, tenho contradições para dar e vender, seriam precisas mais páginas só para isso.

Quem nunca caiu numa contradição que atire a primeira pedra. 

Eis que o problema não está em por vezes, sem nos apercebermos, acabarmos por ter práticas que não estão inteiramente alinhadas com aquilo que defendemos, ou por vezes, sermos alvo daquilo que nós próprios condenamos — não acredito em perfeição, acredito em aperfeiçoamento. Estou a referir-me apenas aos “políticos” e “activistas” de smartphone, que pregam a sua verdade com arrogância e superioridade moral, verdade essa muitas vezes emprestada por terceiros que fizeram o seu trabalho de casa (ou não), como por exemplo as celebridades e os influencers que seguem nos seus feeds. São também estas pessoas que ostracizam aqueles que não pensam igual a si, e que distorcem factos para incitar discurso do ódio. São os primeiros a desrespeitar o próximo quando confrontados com argumentos contrários, não apenas por se sentirem impotentes com o tamanho da sua ignorância, mas porque sentem que os elásticos que sustêm a sua máscara estão prestes a rebentar.

As redes sociais vieram abrir espaço para que todos nós possamos gritar ao mundo que existimos e o quão especiais somos. Fazemo-lo produzindo e partilhando conteúdos, ou participando em discussões políticas e sociais, mostrando que temos uma opinião e que defendemos causas nobres. Não tenho nada contra isso. Ainda bem que existe um espaço aberto para que todos possam partilhar os seus talentos, ou para que se possam expressar livremente, o problema é que muitos escolhem fazê-lo sem o mínimo esforço e pelas razões erradas. Escolhemos parecer algo que não somos no mundo virtual, para obter algo que não temos no mundo real.

Voltando ao activismo instantâneo. Parece-me claro que existe uma certa vaidade em se praticar o bem. Veste-se altruísmo para ficar na moda, como quem mete um filtro numa fotografia. Pessoalmente, não acredito em altruísmo. Fazer algo de positivo por terceiros é um acto egoísta, fazemo-lo porque nos sentimos bem connosco ao doar-nos. Não existe nada de errado nisso, pelo contrário, triste é fazê-lo e ainda sentir vaidade por isso.

“A vaidade é um principio de corrupção.”

Machado de Assis

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.