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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

25
Abr24

Em Cada Português...

Profetas da verdade impermeável!

Embaixadores da moral e da virtude!

Reis ineptos gordos

com mãos belas e magras,

e barrigas cheias de opiniões.

Parece que se tornariam invisíveis

se não possuíssem nenhuma.

Argh! Que sentimento aterrador!

Não ser visto por nada nem por ninguém

Não pertencer a nada nem a ninguém.

Pensadores preguiçosos! E por isso,

abraçam causas e seguram bandeiras.

Pavoneiam-se com as cores do altruísmo,

para esconder a cor do medo.

Medo da solidão! Medo da mediocridade!

Uma terrina vazia continuará vazia

por mais flores que lhe pintem.

Para se ser alguém, é preciso ser-se!

Não é sobre ser diferente!

Qualquer idiota pode sê-lo.

Ser alguém é sobre ser autêntico

e para isso haja coragem! Haja fome!

Há algo podre no reino de Portugal!

Este país está cheio de inquisidores!

Donos de certezas e amantes de etiquetas.

Missionários de tudo e de coisa nenhuma.

Quais filhos da revolução!?

Netos bastardos do regime, isso sim!

Escrevem de azul as suas canções

com o lápis que herdaram dos seus avós.

Mudam-se os tempos, permanecem as vontades.

Aquele que um dia foi sodomizado,

desejará mais tarde sodomizar o outro.

Em cada português mora um ditador!

Escrevem, cantam, e pintam a Liberdade,

mas apenas a deles!

E a dos que pensam igual a si!

Um homem acorrentado não tolera seres livres.

Pois deixem-me contar-vos um segredo…

Eles não desejam a Liberdade!

ELES TEMEM-NA!!!

A Liberdade é o maior inimigo

dos que não sabem quem são,

e o que fazem aqui!

 

Leandro Myslo,

em "Epifania dos Vinte e Oito"

23
Jan23

O Berro de Quincas


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Hoje vou falar-vos sobre o meu encontro com alguém que teve duas vidas e três mortes. Não me refiro a nenhuma experiência espiritual esotérica, mas ao conto de Jorge Amado, publicado pela primeira vez em 1959, numa revista carioca chamada Senhor. Mais tarde, foi editado em livro e tornou-se uma das obras mais famosas do escritor.

A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água, embora seja uma pequena história, escrita numa linguagem simples, o que a torna alcançável a todo o tipo de público, trás consigo mensagens um tanto profundas. Se julgasse-mos o livro pelo título, levaria-nos erroneamente a pensar de que se trata de um drama, mas na verdade, estamos perante uma sátira social que mistura o real e o absurdo de uma forma um tanto cómica.

Neste conto, Jorge Amado, constrói uma narrativa em torno da dualidade da vida de um homem que deixou de parecer Joaquim, homem domesticado pelas convenções sociais, funcionário público, e aparentemente bem sucedido aos olhos da sua família e dos seus vizinhos; para ser Quincas, o homem que um dia largou tudo, entrou num bar que habitualmente frequentava, entornou um copo de água achando que era cachaça, e deu o grito da sua libertação — o grito que o tornou no boémio mais famoso das ruas de Salvador, que fazia troça dos valores burgueses, dos deveres cívicos, e da hipocrisia da sociedade.

Ler este conto, foi como regressar ao passado e resgatar algumas memórias, um passado não tão longínquo onde um dia também fui Joaquim, e um passado mais recente onde eu já era Quincas. 

Já fui o jovem que perseguia a ideia de “ter sucesso”, e que durante muitos anos carregou o fardo de tentar “ser alguém”, encaixando-se lentamente nos moldes da sociedade perfeita, para ser o jovem que descobriu que já nascera sendo alguém, e que o sabor do sucesso que antes perseguia e começara a sentir, era na verdade o sabor a corante. 

Quanto ao passado recente, refiro-me à primeira viagem internacional que fiz sozinho, há cerca de um mês, para Salvador da Bahia justamente, cidade pela qual me apaixonei de imediato, pelo seu lado pitoresco e por todo o património que carrega, e que ainda hoje me invade alguns sonhos. Nunca imaginei que um dia estaria no Largo Quincas Berros D’agua, nome do personagem principal de um livro que constava há muito na minha lista de livros a ler.

Ao entrarmos no mundo de Quincas, somos automaticamente transportados para Salvador, inundados pela cultura baiana, acordados com uma chapada de realidade, e intrigados com uma pitada de fantasia.

18
Jan22

Snobismos à Parte

Pratico hoje, neste auto-retrato, o exercício de me despir dos habituais snobismos com que me habituei a cobrir — como se estes me conferissem qualidades intelectuais e me destacasse entre os demais semelhantes.

 

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Recentemente, dei por mim a questionar se o hábito de afirmar, com alguma presunção, que não reconheço graça no acto de tirar selfies, não será também um acto de vaidade e de um certo narcisismo. Apercebi-me de que alguns ilustres contemporâneos que eu muito admiro, e cuja inteligência me distância a largos passos, fazem coisas no mundo digital que eu normalmente condenaria, e que em nada comprometem a qualidade que fazem notar nas suas obras, ou nos seus feitos. Terei eu a empáfia de achar que também eles estão errados? Jamais! Hoje tenho a perspicácia de entender que talvez eles sim, se sintam mais livres do que eu afirmo ser. Não estarão eles, mais velhos, vivendo como jovens, e eu, mais jovem, vivendo como um velho?

Que necessidade é esta de me querer fazer diferente dos outros quando todos o são à sua maneira? Se considero a autenticidade uma qualidade mais nobre do que a peculiaridade, então que eu Seja, e não que pareça. Podemos pintar-nos da forma como bem nos aprouver, porém, a melhor aprovação não é daqueles que nos veem, mas sim daqueles que nos sentem.

Alguns clichés têm a sua razão de existir, como aquele que diz que o segredo da vida está no equilíbrio das coisas. Todo o meu trabalho é uma revelação, é uma revelação do que eu sou, do que eu sinto, do que eu penso, e do que eu vejo, e quem eu sou tem um rosto.

Tanta merda para publicar uma selfie.

30
Jun21

Ser Livre Numa Casca de Noz

Recentemente, no âmbito de uma formação, fui desafiado a reflectir e a partilhar que aspectos da minha vida precisariam ainda de ser trabalhados hoje, para viver a vida que eu idealizo amanhã. Enquanto passeava pelas Salinas do Samouco, sentei-me debaixo de uma árvore e escrevi a seguinte reflexão:

 

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Aos vinte e oito anos de idade, impulsionado pelo medo de chegar ao fim da vida e descobrir que não vivi, tomei a primeira de muitas decisões que vieram revolucionar esta minha breve passagem pelo mundo. Se até ao dia dessa grande decisão todas as minhas escolhas tinham sido orientadas pela razão, daí adiante a minha vida passou a ser orientada pela intuição.

Quando silenciei a minha mente para escutar a minha voz interior, que havia sido calada pelas exigências do mundo moderno, deu-se a descoberta de uma força avassaladora. Tornou-me mais genuíno, e resgatou o sentido da minha vida que tinha sido tomada pelo automatismo e pela velocidade frenética em que vivemos. Hoje tomo decisões guiado pela intuição, e só depois procuro a razão para explicar o que ela decidiu — o lado racional garante a sobrevivência, mas não garante a vida.

Quanto ao futuro, não faço grandes planos, deixo apenas fluir. Quanto maior a capacidade de escutar e sentir a nossa voz interior, menor o medo da viagem.

Se tenho sonhos? Apenas quando durmo. Acordado tenho desejos, e a minha maior ambição é trazer consciência a esse processo de desejar. Quando a fonte do desejo ganha uma expressão inconsciente passamos a viver em modo compulsivo, na incessante missão de satisfazer tais desejos, perdendo aos poucos a capacidade de observar e absorver a beleza da simplicidade da vida. Fugimos de nós próprios nessa busca obsessiva pelo prazer, tornando-nos escravos do desejo e prisioneiros dum ciclo vicioso.

Ao contrário do que nos vendem, prazer não é felicidade — se assim fosse seríamos todos felizes.

Quero depender cada vez menos da dimensão física para estar em paz comigo e com o mundo, para viver feliz e apreciar os pequenos detalhes da vida sem me apegar. Para isso, trabalho internamente para que cada vez mais me sinta como Hamlet gostaria de se ter sentido:

“Eu podia ser livre numa casca de noz, não importa o lugar onde eu esteja, o importante é a minha consciência.”

20
Abr21

Quarenta Centímetros

Antes de mais, gostaria de reforçar que o texto que se segue não é sobre altruísmo. Além de uma reflexão, este texto é um testemunho sobre a minha experiência de doação de cabelo e sobre as razões que me motivaram a fazê-lo. Vejo neste meu simples gesto apenas uma forma de tornar a minha vida mais prática, de trabalhar questões como o apego e a vaidade, e de devolver o sorriso a uma criança.

Durante muitos anos, sobretudo na minha adolescência, fui confrontado com o que muitos de nós em alguma medida e nalguma fase da vida tivemos, problemas de auto-estima e de auto-aceitação. Crescer numa sociedade competitiva como a que vivemos, onde cada vez mais impera o culto da imagem e do corpo, e onde se define o belo e o feio através de modelos de comparação, é muitas vezes uma tarefa árdua e sofrida para muitas crianças e jovens-adolescentes. Se não tiverem uma estrutura familiar sólida e saudável durante o seu desenvolvimento, o conflito interno existente em muitas delas poderá acompanhá-las até na vida adulta. 

Existe uma pressão externa, influenciada pelos mídia e pelos supostos padrões de beleza, para nos enquadrarmos num determinado perfil estético e posteriormente nos sentirmos aceitos, dignos de amor, e de sucesso profissional. Essa pressão é ainda maior nos dias de hoje, na era dos clicks e polegares em que estamos todos conectados. Existem ferramentas digitais, como por exemplo as redes sociais, que vieram abrir um espaço onde todos se podem mostrar ao mundo na forma como desejariam ser vistos. Se por um lado, entre outras vantagens, elas vieram permitir a quem tem poucos recursos, a possibilidade de hoje divulgarem os seus trabalhos artísticos e/ou profissionais, por outro elas tornaram-se um autêntico circo de vaidades. 

Não querendo culpar o capitalismo de todos os males do mundo, visto que este não é uma identidade autónoma mas sim um sistema criado e alimentado pelo homem, não podemos negar que este é contraproducente na desconstrução de determinados estigmas, estereótipos, e preconceitos existentes na sociedade. Este sistema mantém aberto o espaço onde a beleza é um produto de consumo e de negócio, e como tal, as grandes indústrias através do marketing e da publicidade criam efeitos de sentido e operam na produção de verdades cristalizadas.

Na minha experiência pessoal, e como alguém que também sentiu na pele esse conflito interno durante a adolescência, fui fortemente influenciado pela cultura mediática e comecei a “adornar a alma com a beleza do corpo” quando deveria ser ao contrário. Comecei a identificar o meu Eu como corpo e a construir uma imagem que fosse socialmente aceita. Através das roupas, dos penteados, dos perfumes, e dos acessórios, encontrei uma forma de desviar das minhas imperfeições o foco do olhar alheio. Foi uma forma de camuflar a minha insegurança e sentimento de inferioridade, e de buscar uma sensação de igualdade para não me sentir rejeitado ou ofuscado pelo brilho dos outros. Depois de muitos anos a fazê-lo, dei por mim completamente escravo da vaidade e cada vez mais distante da minha verdadeira essência enquanto ser-humano. 

Se o meu objectivo fosse passar despercebido diria que fui uma espécie de camaleão, mas como o efeito pretendido era precisamente o oposto, mudei mais vezes de estilo do que um camaleão muda de cor em toda a sua vida. Essa inconstância é uma das silenciosas consequências do capitalismo, que fomenta a constante insatisfação e que nos impele a consumir cada vez mais em busca do novo e do melhor. Uma espiral sem fim que força o mundo a uma mutação cada vez mais acelerada, tornando-se cada vez mais difícil ao ser-humano conseguir acompanhar. 

Quem me conhece, ou de alguma forma tem acompanhado este blogue, terá uma ideia do quão importante foram os vinte oito anos para mim. Foi uma altura de viragem na minha vida e o início de uma viagem consciente de autoconhecimento, e uma das consequências naturais desse processo foi a libertação da vaidade que sentia e dessa identificação como corpo. 

A palavra vaidade tem sua origem do latim vanitas, vanitatis - cujo significado é “vacuidade; inutilidade; inconstância; futilidade; orgulho vão, o que é próprio do vácuo”, ou seja: vazio!”

Actualmente, não uso perfumes nem desodorantes, a roupa que tenho é escolhida tendo em conta a sua utilidade, priorizando a qualidade em detrimento da quantidade, e se me virem com algum acessório é porque ele carrega algum valor simbólico para mim. Não estou com isto a dizer que este é o modelo a seguir, é simplesmente o modelo que me serve e que hoje faz-me sentido. Não posso também afirmar que me libertei dessa vaidade por completo, e embora esteja a referir-me a ela num nível estético, esta também se pode manifestar num nível intelectual — ambas estão associadas ao nosso ego e trabalhar isso é um longo processo. 

Ultimamente, e em tom de brincadeira, costumava afirmar que em tempos fui um homem muito vaidoso e que hoje a minha única vaidade está no meu cabelo. Se por um lado acreditava nessa afirmação, por outro, sinto que não há nada de supérfluo em cuidar daquilo que já é nosso por natureza. Da mesma maneira que o ser humano deve descobrir, cuidar e trazer à tona o que de mais belo tem da sua natureza interna, o mesmo deve poder fazê-lo com a sua natureza externa — o seu corpo. Cuidar da nossa imagem não é ser escravo dela, se assim for, seremos só maquilhagem.

O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em acção.

Fernando Pessoa

A manutenção do bem estar físico e psicológico exige que cuidemos do nosso corpo e da nossa mente. Se ambos forem alimentados de forma consciente e equilibrada isso refletir-se-á naturalmente na nossa imagem. Adornar o corpo não reflecte a nossa alma, apenas disfarça o nosso vazio. 

Antes de testemunhar a experiência enquanto dador de cabelo, fiz esta longa reflexão por acreditar que ela tem uma profunda ligação a este meu gesto.

 

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Há cerca de 6 anos decidi voltar a deixar crescer o cabelo. Cansado de usar cera modeladora para afastá-lo da vista, de testar penteados que me favorecessem, de frequentar barbeiros, e de conversas de circunstância que lá se fazem, cheguei à conclusão que resolveria esse assunto deixando-o simplesmente crescer. Como já o tinha feito duas vezes no passado, embora por menos tempo, sabia que por herança genética tinha um tipo de cabelo que crescia rápido, forte e saudável. O próprio parecia pedir-me que não lhe apresentasse tesouras, tendo em conta as suas características. Em seis anos fi-lo apenas por duas vezes e só para cortar as pontas, tirando isso, não fazia planos para definir um limite de tamanho. 

Usando apenas um sabonete natural e uma solução de vinagre com água nas lavagens, e somente uma vez por semana, cuidar dele estava a tornar-se uma tarefa muito complicada. Para além do embaraço que era por vezes o simples vestir de um casaco, os nós que apareciam quando usava camisolas de capuz, ou as vezes em que o cabelo se prendia na porta do carro, tratar dele exigia muito tempo no banho, muita água e muita paciência para o pentear e desembaraçar. Para não falar do tempo que gastava nos dias de chuva em que precisava sair de casa e me via obrigado a usar o secador. 

Ao fim de tantos anos a cuidar dele, desenvolvi uma espécie de apego. Só de pensar em cortá-lo sentia como se me tivessem a arrancar um membro, e ironicamente cheguei a ter alguns pesadelos com isso. No mínimo estranho confesso.

Eu sabia que a qualidade do meu cabelo e o seu tamanho era algo incomum num homem, razão de ter sido inúmeras vezes elogiado e cobiçado. Se uma parte de mim gostava dessa atenção, a outra parte sentia-se desconfortável — era uma sensação agridoce. No entanto, a parte que gostava teve impacto na hora de colocar os aspectos positivos e negativos na balança antes de tomar esta decisão — não seria honesto se dissesse o contrário. Ocorreram-me pensamentos limitantes de que, se o cortasse, perderia também uma característica estética que me diferenciava e atraía o olhar alheio. Era tudo sinal de resistência ao abandono do que ainda me restava da velha vaidade. 

Para além disso, houve também um factor de carácter simbólico que pesou na minha decisão. Existe em mim um certo fascínio pelos povos indígenas, pela sua cultura, pelos simbolismos que carregam, e sobretudo pela relação simbiótica que mantêm com a natureza. Desejando entender porque razão sentia que se cortasse o cabelo perderia uma parte da minha força vital, descobri que para os chefes indígenas o cabelo longo era um prolongamento do sistema nervoso, o que lhes dava a capacidade de sentir melhor a presença de estranhos. Segundo alguns cientistas, o cabelo é composto por fios sensitivos, eles transmitem uma série de informações ao cérebro e ao sistema límbico, parte responsável pelas emoções. Não espero que me entendam nesta última parte, mas não seria um fiel testemunho se não o partilhasse.

Há alguns anos, através da experiência pessoal de um conhecido de infância, também partilhada nas redes sociais, fiquei a saber que era possível doar cabelo com a finalidade de serem produzidas cabeleiras destinadas a doentes oncológicos. A maior parte dos portadores de doenças oncológicas, como por exemplo o cancro, perdem parcialmente o seu cabelo durante os tratamentos, e se estes forem mais agressivos, dependendo do tipo de cancro e da sua extensão, chegam mesmo a perder a sua totalidade. Ao saber disso, mentalizei-me que se um dia voltasse a ter cabelo comprido esse seria o seu destino, e não um caixote do lixo onde por duas vezes acabou desperdiçado.

Quando comecei finalmente a equacionar a hipótese de cortar o cabelo, com setenta centímetros de comprimento e no limiar da minha paciência, lembrei-me desta antiga promessa. Se a praticidade que ganharia no meu dia-a-dia, ou a leveza que sentiria após esse desapego não eram ainda motivações suficientes, o saber que essa acção poderia devolver um sorriso a uma criança tinha de ser uma prioridade no meu pensamento. Comecei por procurar informações a respeito enquanto os cabeleireiros se mantinham fechados, devido às restrições em vigor na sequência da pandemia, e assim que reabriram dei então o primeiro passo, e também o maior, em direcção ao cumprimento desta minha promessa.

Em Portugal, onde gostaria de tê-lo feito, era possível doar o nosso cabelo à Liga Portuguesa Contra o Cancro ou entregar diretamente no IPO (Instituto Português de Oncologia), até que em 2015 anunciaram publicamente que deixariam de receber doações por falta de necessidade. No entanto, a partir das pesquisas que fiz, tomei conhecimento que existem várias associações internacionais, quer na Europa, quer em outras partes do mundo, que aceitam doações para a mesma finalidade. O tamanho das mechas de cabelo pretendido pela maioria das associações, são no mínimo 30 cm de comprimento, sendo que algumas aceitam um pouco menos. Podemos encontrar nos respectivos sites estas informações mais detalhadas e as indicações de como fazê-lo, pois existem alguns requisitos que precisam ser atendidos para que os cabelos doados sejam legíveis para elaboração de cabeleiras. (Ver link) É possível que algumas doações não venham a ser utilizadas, e esse foi o meu maior receio. Ainda assim, entre a dúvida do seu aproveitamento e a certeza do seu desperdício, é preferível a primeira. Deitar no lixo pela terceira vez estava fora de questão. 

Recomendado por uma amiga, o que me facilitou na escolha, enviei o meu cabelo para Little Princess Trust, uma associação que distribui cabeleiras gratuitamente a crianças e jovens até aos 24 anos, que perderam o cabelo devido a tratamentos contra o cancro ou outras doenças. Para além disso, esta associação tem apoiado o desenvolvimento de tratamentos do cancro menos agressivos e tóxicos, e colaborado para o aprofundamento da pesquisa das causas e do tratamento do cancro infantil.

Bem sei que este gesto em nada contribui para a cura da doença, pelo menos de uma forma directa, mas irá certamente contribuir para que uma criança ou um/a jovem possa recuperar parte da sua auto-estima e voltar a sorrir — o cabelo não cura, mas um sorriso pode ajudar. Acredito que o amor e a alegria são ingredientes indispensáveis para ajudar a vencer qualquer batalha. Numa sociedade como a que aqui descrevi, ter cabelo ganha um peso ainda maior no desenvolvimento de uma criança, e neste caso, não é um sentimento de vaidade, é um sentimento de pertença.

Posto isto, devo dizer-vos que não me custou absolutamente nada tê-lo feito, foi fácil e indolor. Todas as questões que levantei na indecisão de cortar o cabelo caíram por terra quando colocadas ao lado das questões de quem não o tem. Embora hoje sinta que essas minhas preocupações de indecisão eram banais, é perfeitamente natural e legítimo que as tenha tido. É legítimo que uma pessoa não se sinta segura em fazer o mesmo com seu cabelo, e está tudo bem, não se deve sentir culpada por isso. Seja um desafio, uma decisão, uma dor, ou um sofrimento, nenhum deles deve ser medido ou minimizado por comparação com o do outro. A intensidade das coisas depende muito da natureza, da bagagem, e do estado emocional de cada um.

Para concluir, devo dizer-vos que não me senti melhor pessoa depois desta experiência, senti-me sim mais leve e mais liberto, com menos quarenta centímetros de cabelo, de vaidade, e de apego. E na mesma medida, senti-me feliz por saber que esse pequeno gesto significará um grande sorriso no rosto de alguém.

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