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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

20
Abr21

Quarenta Centímetros

Antes de mais, gostaria de reforçar que o texto que se segue não é sobre altruísmo. Além de uma reflexão, este texto é um testemunho sobre a minha experiência de doação de cabelo e sobre as razões que me motivaram a fazê-lo. Vejo neste meu simples gesto apenas uma forma de tornar a minha vida mais prática, de trabalhar questões como o apego e a vaidade, e de devolver o sorriso a uma criança.

Durante muitos anos, sobretudo na minha adolescência, fui confrontado com o que muitos de nós em alguma medida e nalguma fase da vida tivemos, problemas de auto-estima e de auto-aceitação. Crescer numa sociedade competitiva como a que vivemos, onde cada vez mais impera o culto da imagem e do corpo, e onde se define o belo e o feio através de modelos de comparação, é muitas vezes uma tarefa árdua e sofrida para muitas crianças e jovens-adolescentes. Se não tiverem uma estrutura familiar sólida e saudável durante o seu desenvolvimento, o conflito interno existente em muitas delas poderá acompanhá-las até na vida adulta. 

Existe uma pressão externa, influenciada pelos mídia e pelos supostos padrões de beleza, para nos enquadrarmos num determinado perfil estético e posteriormente nos sentirmos aceitos, dignos de amor, e de sucesso profissional. Essa pressão é ainda maior nos dias de hoje, na era dos clicks e polegares em que estamos todos conectados. Existem ferramentas digitais, como por exemplo as redes sociais, que vieram abrir um espaço onde todos se podem mostrar ao mundo na forma como desejariam ser vistos. Se por um lado, entre outras vantagens, elas vieram permitir a quem tem poucos recursos, a possibilidade de hoje divulgarem os seus trabalhos artísticos e/ou profissionais, por outro elas tornaram-se um autêntico circo de vaidades. 

Não querendo culpar o capitalismo de todos os males do mundo, visto que este não é uma identidade autónoma mas sim um sistema criado e alimentado pelo homem, não podemos negar que este é contraproducente na desconstrução de determinados estigmas, estereótipos, e preconceitos existentes na sociedade. Este sistema mantém aberto o espaço onde a beleza é um produto de consumo e de negócio, e como tal, as grandes indústrias através do marketing e da publicidade criam efeitos de sentido e operam na produção de verdades cristalizadas.

Na minha experiência pessoal, e como alguém que também sentiu na pele esse conflito interno durante a adolescência, fui fortemente influenciado pela cultura mediática e comecei a “adornar a alma com a beleza do corpo” quando deveria ser ao contrário. Comecei a identificar o meu Eu como corpo e a construir uma imagem que fosse socialmente aceita. Através das roupas, dos penteados, dos perfumes, e dos acessórios, encontrei uma forma de desviar das minhas imperfeições o foco do olhar alheio. Foi uma forma de camuflar a minha insegurança e sentimento de inferioridade, e de buscar uma sensação de igualdade para não me sentir rejeitado ou ofuscado pelo brilho dos outros. Depois de muitos anos a fazê-lo, dei por mim completamente escravo da vaidade e cada vez mais distante da minha verdadeira essência enquanto ser-humano. 

Se o meu objectivo fosse passar despercebido diria que fui uma espécie de camaleão, mas como o efeito pretendido era precisamente o oposto, mudei mais vezes de estilo do que um camaleão muda de cor em toda a sua vida. Essa inconstância é uma das silenciosas consequências do capitalismo, que fomenta a constante insatisfação e que nos impele a consumir cada vez mais em busca do novo e do melhor. Uma espiral sem fim que força o mundo a uma mutação cada vez mais acelerada, tornando-se cada vez mais difícil ao ser-humano conseguir acompanhar. 

Quem me conhece, ou de alguma forma tem acompanhado este blogue, terá uma ideia do quão importante foram os vinte oito anos para mim. Foi uma altura de viragem na minha vida e o início de uma viagem consciente de autoconhecimento, e uma das consequências naturais desse processo foi a libertação da vaidade que sentia e dessa identificação como corpo. 

A palavra vaidade tem sua origem do latim vanitas, vanitatis - cujo significado é “vacuidade; inutilidade; inconstância; futilidade; orgulho vão, o que é próprio do vácuo”, ou seja: vazio!”

Actualmente, não uso perfumes nem desodorantes, a roupa que tenho é escolhida tendo em conta a sua utilidade, priorizando a qualidade em detrimento da quantidade, e se me virem com algum acessório é porque ele carrega algum valor simbólico para mim. Não estou com isto a dizer que este é o modelo a seguir, é simplesmente o modelo que me serve e que hoje faz-me sentido. Não posso também afirmar que me libertei dessa vaidade por completo, e embora esteja a referir-me a ela num nível estético, esta também se pode manifestar num nível intelectual — ambas estão associadas ao nosso ego e trabalhar isso é um longo processo. 

Ultimamente, e em tom de brincadeira, costumava afirmar que em tempos fui um homem muito vaidoso e que hoje a minha única vaidade está no meu cabelo. Se por um lado acreditava nessa afirmação, por outro, sinto que não há nada de supérfluo em cuidar daquilo que já é nosso por natureza. Da mesma maneira que o ser humano deve descobrir, cuidar e trazer à tona o que de mais belo tem da sua natureza interna, o mesmo deve poder fazê-lo com a sua natureza externa — o seu corpo. Cuidar da nossa imagem não é ser escravo dela, se assim for, seremos só maquilhagem.

O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em acção.

Fernando Pessoa

A manutenção do bem estar físico e psicológico exige que cuidemos do nosso corpo e da nossa mente. Se ambos forem alimentados de forma consciente e equilibrada isso refletir-se-á naturalmente na nossa imagem. Adornar o corpo não reflecte a nossa alma, apenas disfarça o nosso vazio. 

Antes de testemunhar a experiência enquanto dador de cabelo, fiz esta longa reflexão por acreditar que ela tem uma profunda ligação a este meu gesto.

 

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Há cerca de 6 anos decidi voltar a deixar crescer o cabelo. Cansado de usar cera modeladora para afastá-lo da vista, de testar penteados que me favorecessem, de frequentar barbeiros, e de conversas de circunstância que lá se fazem, cheguei à conclusão que resolveria esse assunto deixando-o simplesmente crescer. Como já o tinha feito duas vezes no passado, embora por menos tempo, sabia que por herança genética tinha um tipo de cabelo que crescia rápido, forte e saudável. O próprio parecia pedir-me que não lhe apresentasse tesouras, tendo em conta as suas características. Em seis anos fi-lo apenas por duas vezes e só para cortar as pontas, tirando isso, não fazia planos para definir um limite de tamanho. 

Usando apenas um sabonete natural e uma solução de vinagre com água nas lavagens, e somente uma vez por semana, cuidar dele estava a tornar-se uma tarefa muito complicada. Para além do embaraço que era por vezes o simples vestir de um casaco, os nós que apareciam quando usava camisolas de capuz, ou as vezes em que o cabelo se prendia na porta do carro, tratar dele exigia muito tempo no banho, muita água e muita paciência para o pentear e desembaraçar. Para não falar do tempo que gastava nos dias de chuva em que precisava sair de casa e me via obrigado a usar o secador. 

Ao fim de tantos anos a cuidar dele, desenvolvi uma espécie de apego. Só de pensar em cortá-lo sentia como se me tivessem a arrancar um membro, e ironicamente cheguei a ter alguns pesadelos com isso. No mínimo estranho confesso.

Eu sabia que a qualidade do meu cabelo e o seu tamanho era algo incomum num homem, razão de ter sido inúmeras vezes elogiado e cobiçado. Se uma parte de mim gostava dessa atenção, a outra parte sentia-se desconfortável — era uma sensação agridoce. No entanto, a parte que gostava teve impacto na hora de colocar os aspectos positivos e negativos na balança antes de tomar esta decisão — não seria honesto se dissesse o contrário. Ocorreram-me pensamentos limitantes de que, se o cortasse, perderia também uma característica estética que me diferenciava e atraía o olhar alheio. Era tudo sinal de resistência ao abandono do que ainda me restava da velha vaidade. 

Para além disso, houve também um factor de carácter simbólico que pesou na minha decisão. Existe em mim um certo fascínio pelos povos indígenas, pela sua cultura, pelos simbolismos que carregam, e sobretudo pela relação simbiótica que mantêm com a natureza. Desejando entender porque razão sentia que se cortasse o cabelo perderia uma parte da minha força vital, descobri que para os chefes indígenas o cabelo longo era um prolongamento do sistema nervoso, o que lhes dava a capacidade de sentir melhor a presença de estranhos. Segundo alguns cientistas, o cabelo é composto por fios sensitivos, eles transmitem uma série de informações ao cérebro e ao sistema límbico, parte responsável pelas emoções. Não espero que me entendam nesta última parte, mas não seria um fiel testemunho se não o partilhasse.

Há alguns anos, através da experiência pessoal de um conhecido de infância, também partilhada nas redes sociais, fiquei a saber que era possível doar cabelo com a finalidade de serem produzidas cabeleiras destinadas a doentes oncológicos. A maior parte dos portadores de doenças oncológicas, como por exemplo o cancro, perdem parcialmente o seu cabelo durante os tratamentos, e se estes forem mais agressivos, dependendo do tipo de cancro e da sua extensão, chegam mesmo a perder a sua totalidade. Ao saber disso, mentalizei-me que se um dia voltasse a ter cabelo comprido esse seria o seu destino, e não um caixote do lixo onde por duas vezes acabou desperdiçado.

Quando comecei finalmente a equacionar a hipótese de cortar o cabelo, com setenta centímetros de comprimento e no limiar da minha paciência, lembrei-me desta antiga promessa. Se a praticidade que ganharia no meu dia-a-dia, ou a leveza que sentiria após esse desapego não eram ainda motivações suficientes, o saber que essa acção poderia devolver um sorriso a uma criança tinha de ser uma prioridade no meu pensamento. Comecei por procurar informações a respeito enquanto os cabeleireiros se mantinham fechados, devido às restrições em vigor na sequência da pandemia, e assim que reabriram dei então o primeiro passo, e também o maior, em direcção ao cumprimento desta minha promessa.

Em Portugal, onde gostaria de tê-lo feito, era possível doar o nosso cabelo à Liga Portuguesa Contra o Cancro ou entregar diretamente no IPO (Instituto Português de Oncologia), até que em 2015 anunciaram publicamente que deixariam de receber doações por falta de necessidade. No entanto, a partir das pesquisas que fiz, tomei conhecimento que existem várias associações internacionais, quer na Europa, quer em outras partes do mundo, que aceitam doações para a mesma finalidade. O tamanho das mechas de cabelo pretendido pela maioria das associações, são no mínimo 30 cm de comprimento, sendo que algumas aceitam um pouco menos. Podemos encontrar nos respectivos sites estas informações mais detalhadas e as indicações de como fazê-lo, pois existem alguns requisitos que precisam ser atendidos para que os cabelos doados sejam legíveis para elaboração de cabeleiras. (Ver link) É possível que algumas doações não venham a ser utilizadas, e esse foi o meu maior receio. Ainda assim, entre a dúvida do seu aproveitamento e a certeza do seu desperdício, é preferível a primeira. Deitar no lixo pela terceira vez estava fora de questão. 

Recomendado por uma amiga, o que me facilitou na escolha, enviei o meu cabelo para Little Princess Trust, uma associação que distribui cabeleiras gratuitamente a crianças e jovens até aos 24 anos, que perderam o cabelo devido a tratamentos contra o cancro ou outras doenças. Para além disso, esta associação tem apoiado o desenvolvimento de tratamentos do cancro menos agressivos e tóxicos, e colaborado para o aprofundamento da pesquisa das causas e do tratamento do cancro infantil.

Bem sei que este gesto em nada contribui para a cura da doença, pelo menos de uma forma directa, mas irá certamente contribuir para que uma criança ou um/a jovem possa recuperar parte da sua auto-estima e voltar a sorrir — o cabelo não cura, mas um sorriso pode ajudar. Acredito que o amor e a alegria são ingredientes indispensáveis para ajudar a vencer qualquer batalha. Numa sociedade como a que aqui descrevi, ter cabelo ganha um peso ainda maior no desenvolvimento de uma criança, e neste caso, não é um sentimento de vaidade, é um sentimento de pertença.

Posto isto, devo dizer-vos que não me custou absolutamente nada tê-lo feito, foi fácil e indolor. Todas as questões que levantei na indecisão de cortar o cabelo caíram por terra quando colocadas ao lado das questões de quem não o tem. Embora hoje sinta que essas minhas preocupações de indecisão eram banais, é perfeitamente natural e legítimo que as tenha tido. É legítimo que uma pessoa não se sinta segura em fazer o mesmo com seu cabelo, e está tudo bem, não se deve sentir culpada por isso. Seja um desafio, uma decisão, uma dor, ou um sofrimento, nenhum deles deve ser medido ou minimizado por comparação com o do outro. A intensidade das coisas depende muito da natureza, da bagagem, e do estado emocional de cada um.

Para concluir, devo dizer-vos que não me senti melhor pessoa depois desta experiência, senti-me sim mais leve e mais liberto, com menos quarenta centímetros de cabelo, de vaidade, e de apego. E na mesma medida, senti-me feliz por saber que esse pequeno gesto significará um grande sorriso no rosto de alguém.

18
Jan21

Mil Quilómetros de Autodescoberta (3/3)

Fazia já alguns anos que não nos víamos.

Combinámos numa esplanada perto de uma zona industrial, ponto de encontro habitual dos seus amigos e colegas, quando terminam os seus horários de trabalho. Ali estava eu, um novo elemento que se juntara, por curto tempo, àquilo que me parecia ser uma pequena família. Pareceram-me todos bons rapazes, nomeadamente o companheiro da minha amiga que se fez apresentar com muito boa energia, algo que me deixou feliz por ser o tipo de pessoa com quem ela se relacionava romanticamente. O teor das conversas que tivemos até se aproximar o pôr do sol foi apenas relevante a um nível pessoal, mas posso adiantar que foi uma tarde bem passada e em boa companhia.

Despedi-me de Santo André com o sentido de dever cumprido e uma grande satisfação por perceber que os elos de amizade nunca se quebram apesar da distância ou da regularidade com que se renovam. Serviu igualmente para relembrar o quanto aprecio visitar os meus íntimos mais distantes e de forma inesperada. Era quase noite em Santo André e senti que não seria esse o lugar onde eu queria repousar. Na falta de ideia melhor, tomei a decisão de partir até ao Algarve, minha terra natal.

 

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Desde os seis anos de idade que vivo em Lisboa e quase todos os anos costumava passar alguns dias em Albufeira com a minha família ou com amigos. Uma vez que interrompera essa tradição nos últimos dois anos, decidi juntar o útil ao agradável. Fiz-me novamente à estrada, em direcção a Faro, para assistir a uma actuação musical num bar. A estrela da noite era uma outra amiga, estando este título muito aquém daquilo que realmente representa para mim e com quem partilhei vários palcos no passado.

Ainda no início da viagem e já de noite, à saída de Santiago, entro numa estreita estrada com dois sentidos, repleta de curvas e contracurvas e sem qualquer tipo de iluminação. Tudo o que tinha à minha volta eram apenas árvores que mal viam. A luz dos faróis eram a única coisa que tinha a meu favor e raríssimos foram os carros com que me cruzei. No silêncio da noite e durante os largos minutos que passava sozinho naquela estrada, cheguei a recear o pior e a pensar como me poderia safar se de repente surgisse ali um contratempo. Um pneu furado, uma lâmpada fundida, uma curva mal feita, uma avaria electrónica, entre muitas outras possibilidades. Além disso, a bateria do meu telemóvel já não dava sinais de vida.

Perceber que pensar no assunto não impedia a sua concretização trouxe-me de volta ao momento presente. Cada minuto que passava a pensar em situações que poderiam acontecer e a encontrar em soluções para as mesmas era tempo perdido. Era tempo em que a minha mente estava projectada no futuro, enquanto o presente me passava entre os dedos. Não me traria qualquer vantagem ou utilidade.

O que sabemos do futuro é que um dia o nosso corpo perderá as suas funções vitais. A única garantia que temos é o momento presente e é nele que devemos estar. As adversidades que nele possam surgir são grandes oportunidades para conhecermos os nossos verdadeiros limites e aumentarmos a nossa capacidade de resiliência. A nossa sensação de controlo na vida é uma mera ilusão. Tal como referi anteriormente, apenas controlamos a forma como nos movemos. Não estou com isto a desencorajar ninguém a ser cauteloso, no entanto é necessário algum equilíbrio para que não nos tornemos numa pessoa sistemática. Demasiado planeamento bloqueia-nos a capacidade de lidar com imprevistos, gerando sentimentos de stress e ansiedade. Repito, esta viagem era também sobre autoconhecimento em eventuais situações de desconforto.

Ao permitir-me desfrutar da adrenalina do caminho até Faro, a minha única preocupação passou a ser apenas a de não atropelar nenhum animal que atravessasse a estrada no meio de toda aquela escuridão. Quando avistei a placa branca que mencionava o nome Algarve, respirei de alívio e pude finalmente relaxar. Certamente, há quem faça aquele trajecto com uma perna às costas, mas a quem lá passa de noite e sozinho pela primeira vez, posso dizer que é uma experiência um tanto sinistra.

Chegando finalmente a Faro, procurei um lugar onde pudesse jantar alguma coisa antes do concerto. Algo que foi bastante fácil, por comparação à viagem. Logo depois, dirigi-me até à cidade velha entre as Muralhas de Faro e encontro o bar onde a minha amiga estava prestes a actuar, ficando por ali a contemplar a sua incrível presença em palco, fazendo-se acompanhar de um estonteante sorriso, algo que proporcionava uma sensação familiar aos meus olhos e aos meus ouvidos. Após o concerto, ela fez-me uma visita guiada pela zona de lazer da noite de Faro, nada comparado com a diversidade da noite de Albufeira que tão bem conhecia e da qual fui um grande entusiasta durante muitos anos. Despeço-me com um abraço profundo e sigo para um parque de estacionamento frente à Ria Formosa, perto das muralhas. Não me restando grande alternativa face ao cansaço que sentia, acomodei-me dentro do meu carro para repousar até ao nascer do sol.

Acordado pela luz do sol e pelo ruído da agitação matinal, decidi voltar à estrada, rumando a Albufeira. Começando a faltar-me recursos, ideias, e com compromissos pendentes, sendo esta uma viagem de introspecção e de reencontro comigo mesmo, nada melhor que voltar às minhas raízes antes de regressar a Lisboa.

Pela primeira vez, caminhei sozinho pelo centro antigo de Albufeira, um lugar muito marcante na vida dos meus pais. O verão tinha terminado e ainda se fazia notar a imensa presença de turistas. Estávamos a poucos meses de enfrentar o início da pandemia que estamos hoje a viver. Também pela primeira vez, e devido ao calor que sentia, vi-me obrigado a tirar a roupa que me cobria o tronco, para que pudesse continuar a caminhar confortavelmente entre as bancas, lojas e restaurantes - à procura do bar que em tempos foi explorado pelo meu pai em conjunto com duas irmãs e a minha mãe, e sobre o qual ouvi muitas histórias desde a minha infância.

Era algo que nunca havia feito em público a não ser na praia, dado o complexo que tinha com o meu corpo e que se foi desvanecendo ao longo dos anos. Esse complexo era derivado da condição física com que nasci, fazendo com que o desenho do meu corpo fugisse um pouco do modelo padrão esperado. Na verdade, era mais pelo desconforto de me sentir constantemente observado e não propriamente por saber que carrego tais diferenças, porque a aceitação do meu corpo era algo que já me acompanhava desde a adolescência. No entanto, nunca deixei de utilizar mecanismos na tentativa de ser observado e tratado pelo que sou e não pela matéria que transporta o meu Eu, a minha consciência e a minha alma.

Enquanto escrevo isto, dou por mim a questionar se nos últimos quinze anos terei realmente sido acompanhado pela aceitação que mencionei ou se por um simples sentimento de conformismo. Creio mais na segunda hipótese.

Ao saber que nada poderia fazer para mudar esta condição, mostrou-se mais prático e menos castrante conformar-me com a realidade e não passar o resto da vida a remar contra a maré. Esta mudança de paradigma trouxe-me autoconfiança e lançou-me para a vida. Fez-me atrair uma série de coisas positivas como experiências, pessoas e conquistas. Passei a olhar com outros olhos para a minha imagem reflectida no espelho. Começando a focar-me nas coisas positivas, procurando identificar o que mais gostava e a imaginar formas criativas de ocultar o que menos gostava. Mas tudo isto teve um preço. Um preço que paguei sem saber e que só se fez notar anos mais tarde. Como uma espécie de despesa de manutenção que se faz subtrair todos os meses no saldo bancário e que os mais distraídos nem dão conta.

A aceitação, no verdadeiro sentido da palavra, dá-se quando abraçamos a realidade existente com todas as suas nuances no mundo interno e no mundo externo. Isto só começou realmente a acontecer comigo quando completei vinte e oito anos de idade e após ter passado por uma experiência que me fez colocar toda a minha vida em perspectiva.

Ao contrário da autoconfiança, que é baseada na noção de competência, a auto-aceitação, que indica uma profunda aceitação de nós mesmos com todas as nossas limitações e imperfeições físicas e/ou mentais, materializou-se quando, num acto espontâneo, decidi tirar a camisola em público ou quando me dispo neste testemunho. Faz parte de todo um processo que começou desde que vim ao mundo e que se tem tornado cada vez mais consciente e impactante nos últimos três anos, desde que mergulhei profunda e conscientemente nesta viagem de autoconhecimento.

Depois da longa caminhada pelo centro de Albufeira, encontrei o bar que anteriormente referi, o Daimlers. A nova gerência pouco ou nada se lembrava do espaço, agora inteiramente renovado à excepção da placa que mencionava o seu nome. Decidi voltar à estrada nacional e regressar a casa.

Durante a viagem, dei por mim com um sentimento de realização e de propósito cumprido. Apercebi-me de que, durante estes dias, não me ocorreu qualquer pensamento que me remetesse à relação tóxica com a substância de que falei no início e cujo término me motivou a embarcar esta aventura. Dei por mim com uma série de respostas encontradas e novas questões em aberto, e fui arrebatado por uma enorme vontade de me aventurar em mais experiências na companhia de mim próprio. Não me tornei misantropo nem tenho pretensões de ser um eremita, apenas dei mais um passo decisivo para quebrar o medo da solidão e conhecer a solitude.

Algo muito interessante e revelador que percebi nesta viagem foi que embora caminhasse sozinho, sempre me senti bastante acompanhado. Seria de esperar que quando estamos sozinhos por muito tempo e em lugares que desconhecemos, sentimos uma maior necessidade de socialização do que sentimos no nosso movimentado quotidiano. Na maioria dos sítios por onde passei as pessoas eram dotadas de uma maior predisposição para ajudar o próximo ou até mesmo para conversar com um estranho - o que muitas vezes resulta em surpresas agradáveis e que nos leva a novos lugares. O contrário também pode acontecer, é um facto. Para o evitar, devemos guiar-nos pela intuição. Não vivemos num mundo onde todos nos querem bem, vivemos num mundo onde o desejo de uns se sobrepõe à liberdade de outros. Porém, sabemos que não é somente com estranhos que podem acontecer surpresas desagradáveis. Quantas vezes vemos isso presente entre as nossas famílias e círculos de amigos!?

Cada vez mais acredito e sinto que somos todos parte de uma família humana.

Após quatro dias e mil quilómetros de movimento, regresso a casa mais conectado comigo e a saber um pouco mais sobre mim.

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

05
Jan21

Mil Quilómetros de Autodescoberta (2/3)

Foi uma curta viagem de quarenta minutos em estrada nacional, com uma vista bem mais agradável e próxima da natureza do que teria sido pela auto-estrada. Raramente me cruzei com outros carros e, sendo uma estrada estreita, senti-me mais perto dos campos e quintas envolventes, muitas vezes com árvores muito próximas que criavam uma sombra agradável, ainda que intermitente. O calor ainda era intenso nos últimos dias de Setembro.

Apesar de ter desfrutado da viagem e da minha própria companhia, houve uma altura em que algumas questões que tinham surgido no dia anterior, quando bati à porta do casal amigo de Trindade, voltaram a aparecer. Talvez porque agora seguia inteiramente para o desconhecido. Quando deixei a cidade de Beja, deixei de ter um plano. O facto de não ir ao encontro de alguém familiar, de não conhecer o local para onde ia e de não saber se encontraria um sítio para estacionar e pernoitar, provocava-me alguma insegurança.

Tudo isto fez-me novamente questionar o sentido do que estava a fazer. Eu estava sozinho, sem conta em qualquer rede social e muito menos internet para partilhar fotografias que validassem esta minha experiência, ou uma mensagem que contornasse a ausência de uma companhia. É aqui que surge uma questão que coloquei a mim próprio e que hoje coloco a quem se atravessa no meu caminho, com o objectivo de provocar reflexão. Se estivesses sozinho no mundo, sem ninguém a observar-te, a vida que escolheste continuaria a fazer-te sentido?

Foi à boleia desta reflexão que segui viagem, enquanto apreciava a vista em cada quilómetro. Se não estivermos bem connosco e não soubermos desfrutar da nossa própria companhia, não conseguiremos relacionar-nos com o que nos rodeia de forma saudável. Usaremos pessoas e coisas sempre de uma forma egoísta, com o objectivo de satisfazer desejos, preencher vazios e suprir carências e necessidades. Este tipo de relação com o mundo externo faz com que nos apeguemos e tentemos possuir tudo aquilo que nos faça felizes.

Mas o que experienciamos, na verdade, é o prazer e não a felicidade. Segundo um provérbio Hindu, “o prazer é a sombra da felicidade”. Buscar o prazer no mundo externo é uma coisa natural ao ser humano, somos feitos de matéria mas é também a experiência sensorial que alimenta a nossa alma. No entanto, é importante que exista um equilíbrio nesta busca. Um equilíbrio que nos impeça de cair num desejo incontrolável, que nos salve da obsessão, da dependência, da morte da liberdade interior, do momento em que a busca, o desejo, se revela, afinal, um obstáculo à Felicidade.

A Felicidade é um estado permanente que deve ser procurado no mundo interno. Se a perseguirmos na dimensão física, estaremos constantemente inconstantes e insatisfeitos. No mundo externo tudo é efémero e impermanente. A um nível mais profundo acabaremos por entender que nada está realmente sob o nosso controlo a não ser a forma como nos movemos. Só é possível perceber isto quando olhamos para dentro e experienciamos a verdadeira consciência. Uma vez tocada essa consciência, acontece um processo de descoberta. A mudança será o resultado natural dessa descoberta. Pois ao contrário do mundo externo, a consciência é algo imutável e é nela que reside o nosso verdadeiro Ser. Nada melhor que a seguinte frase do romancista francês Jules Barbey d'Aurevilly para concluir esta minha reflexão: “O prazer é a felicidade dos loucos, enquanto a felicidade é o prazer dos sábios.”

Chegando a Mértola, e antes que o sol se recolhesse, fiz um reconhecimento desta vila museu com o objectivo de perceber que locais teria para visitar no dia seguinte. Para além disso, tinha o desafio de procurar um sítio apropriado para estacionar o carro e nele pernoitar.

Encontrei um lugar interessante junto ao rio e a uns metros de um hotel, imaginando a belíssima vista que teria ao acordar com os raios solares trespassando os vidros do meu carro. Igualmente atraente era a ideia de estar rodeado de árvores e não vizinhos. Mas ocorreu-me que poderia ter o sono interrompido pela presença das autoridades locais por estar estacionado no meio de nenhures, pelo que optei por ficar num parque destinado a auto-caravanas, a poucos metros dali, preservando a experiência que imaginei - substituindo as árvores por auto-caravanas.

Entretanto fez-se noite e fez-se fome. Após umas voltas pela vila, a minha intuição dizia-me que nenhum restaurante naquele lugar me iria providenciar uma refeição vegetariana. Escolhi aleatoriamente um deles e improvisei, pedindo uma sopa de legumes, um prato de feijão e arroz acompanhado com salada e umas fatias de pão alentejano. De volta ao parque de auto-caravanas, tento preparar a melhor cama possível recolhendo os bancos traseiros do carro e fazendo duas camadas de sacos-cama para ter algum conforto. Não foi, de todo, o melhor lugar onde alguma vez dormi. As duas camadas revelaram-se insuficientes para o conforto da minha (unicamente possível) posição fetal.

 

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Acordei como previa, numa luminosa manhã, e desloquei-me até ao lugar em que tencionava repousar na noite anterior para escutar o som da natureza, sem a interferência de vizinhos. Enquanto tomava o pequeno-almoço sou surpreendido por uma orquestra de chocalhos, tocados por um rebanho de ovelhas do outro lado da margem, em simultâneo com o chilrear de pássaros cuja espécie desconheço. Sentado junto de uma mesa de parque de merendas feito em material reciclado, e tentando focar o rebanho do outro lado do rio, dou conta de um incrível espelho horizontal que existia entre nós, reflectindo a silhueta das árvores e o rosto do sol.

Decidi registar em vídeo aquilo que se estava a revelar uma das melhores manhãs, senão a mais admirável, que alguma vez tive. Hoje reconheço a total inutilidade desse feito, pois os limites da tecnologia apenas permitem registar a dimensão estética de cada momento e não as que a transcendem. Permaneci sentado, imóvel e de olhos fechados, durante cerca de uma hora. Talvez estivesse a meditar sem a pretensão de o fazer. Para mim, foi um enorme feito. Sempre que me propus meditar, nunca consegui ignorar os pensamentos que me tentavam alcançar e que habitavam a minha mente mais tempo do que eu gostaria.

Li, algures, um livro em que o autor dizia que a mente, parte de toda esta incrível e complexa máquina que é o corpo humano, é uma ferramenta, e o acto de pensar deve ser feito apenas quando necessário. O problema é que na sociedade onde vivo e na geração a que pertenço, observo que perdemos o domínio desta ferramenta e nos tornámos escravos dela. Pensar tornou-se um estado natural permanente.

Um dia normal na cidade é passado na companhia de multidões, carros, aviões, anúncios, outdoors, mupis, cartazes, luzes, televisões, smartphones, montras, e muito mais. Do acordar ao adormecer, somos constantemente expostos a uma imensidão de imagens e informações para o nosso cérebro processar, fazendo do nosso subconsciente um depósito de conteúdo que condiciona o nosso estado de consciência e de presença - aquele que usaríamos para recuperar o controlo sobre a nossa mente ou abrandá-la. Caso contrário, tornamo-nos reféns da nossa própria mente e afogamo-nos num mar de pensamentos fortemente agitado, à maré do ambiente urbano e tecnológico pelo qual passamos, sem viver.

Após ter meditado, iniciei a caminhada para explorar a vila, de mochila às costas.

Ali a vida acontecia calmamente. Poucos carros circulavam pelas ruas e as pessoas que não caminhavam com serenidade, repousavam nos bancos espalhados pela vila. Ao longo dos inúmeros lugares estrategicamente pensados para contemplar a incrível vista no decorrer da subida até ao Castelo, a distinção entre turistas, trabalhadores e moradores era feita somente pelo traje com que cobriam os seus corpos.

Após explorar cada miradouro, cheguei ao Castelo de Mértola, situado na confluência da Ribeira de Oeiras com o rio Guadiana. Visitei a alcáçova do Castelo onde se encontra o Campo Arqueológico de Mértola e onde podemos ver as ruínas de um bairro muçulmano. Visitei a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, único exemplar de arquitetura religiosa islâmica remanescente no país e, por último, o cemitério, com uma incrível vista para a ponte da Ribeira de Oeiras. Ainda no Castelo, ao conversar um pouco com uma funcionária que se encontrava na sua pausa de cigarro, apercebi-me que ainda havia alguns museus que eu poderia ter visitado, mas não tencionava passar o tempo em lugares fechados, muito menos com bilheteira, pois parte do desafio era utilizar o mínimo dinheiro possível, tirando o máximo partido do que teria à minha mercê.

Pelo meio da tarde, senti que já tinha retirado de Mértola o que havia para retirar. O propósito desta viagem era estar em constante movimento, sem permanecer no mesmo lugar mais do que uma noite.

Depois de algum tempo a pensar qual seria o meu próximo destino, decidi rumar em direção a Vila Nova de Santo André, para visitar uma amiga muito especial dos meus tempos de faculdade, algo que já adiava há muito tempo. Depois de confirmada a disponibilidade dela, voltei à estrada nacional, aproveitando para descobrir algumas vilas e aldeias pelo caminho. Ao chegar a Santiago do Cacém, uma cidade um pouco mais desenvolvida e movimentada, comecei a desconfiar que, com o pouco tempo que tinha, não teria muita sorte em encontrar um lugar seguro e tranquilo para passar a noite no carro. Adiei essa resolução para depois e concentrei-me em chegar a Santo André...

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

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