Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

17
Jul21

Sebastião

Entre as várias razões que levam cada vez mais pessoas a tornarem-se vegetarianas, aquilo que mais influência teve nessa minha decisão, foi os benefícios que teria no meu organismo. O conhecimento das atrocidades cometidas contra os animais na indústria pecuária, e as violentas imagens dessa mesma realidade, foram claramente impactantes, porém não bastariam para me mobilizar de forma tão repentina como a que foi essa minha mudança.

Existe uma certa banalização do sofrimento alheio quando somos diariamente bombardeados pelos media tradicionais, e digitais, com imagens e notícias sobre, acidentes, maus-tratos, guerras, pobreza e terrorismo. Maior parte delas são atentados contra o nosso semelhante, no outro lado do globo, ou fora da nossa esfera privada para a qual estamos cada vez mais inclinados. Por mais que saibamos da verdade, é um conhecimento que fica numa dimensão muito superficial para uma grande maioria.

Na actual era da informação, a velocidade com que ela é criada, e a velocidade com que vivemos, não nos permitem reflectir profundamente sobre estes desequilíbrios do mundo que criámos. As imagens que nos chegam podem até provocar uma reacção emocional, mas essa é efémera, dura até à próxima notícia ou até ao próximo post. Não existe tempo suficiente para nos levar a uma acção, apenas cinco ou dez minutos de sensibilidade para nos provarmos que ainda somos humanos.

Para além do factor velocidade no tempo, há também a sua escassez. Mais de metade da nossa vida é passada a trabalhar, seja num emprego, ou na manutenção do nosso quotidiano. Nas horas vagas, preferimos distrair-nos. Já fomos a geração do zapping, hoje somos a geração do scroll. Vivemos em constante busca por gratificação instantânea, podendo “escolher” o que queremos ver, e o que não queremos, contando é claro com a ajuda do algoritmo. Nas coisas sérias ficamo-nos pelas manchetes de notícias, e pelas frases de livros, pois até no saber estamos cada vez mais comodistas.

Com excepção dos que se demonstram demasiado sensíveis para dar de caras com a violência da verdade, estas são algumas das razões pelos quais muitos escolhem desviar o olhar, pois não querem trespassar as muralhas da sua zona de conforto a verdade gera desconforto, obriga-nos a sair do sofá para que não sintamos vergonha da nossa própria existência.

Ao contrário do que se possa parecer, eu não julgo este comportamento. Poucos são aqueles que se apercebem da sua condição de alienação. Desde cedo que, através da psicologia do inconsciente, somos alvo de implantação de valores, de distorções de realidade, e de massacres ideológicos que potenciam o controlo mental das massas, ora por parte dos governos, ora por parte dos media, e das grandes empresas. Vivemos numa sociedade que tem como centro de importância os interesses económico-financeiros, ao invés do ser humano, e da sua harmonia social e ambiental.

Estava a viver um ano sabático, quando tomei a consciente decisão de retirar da minha alimentação qualquer produto de origem animal (ler texto). Muito desse tempo foi passado em pesquisa; vendo palestras e debates; lendo estudos científicos e testemunhos pessoais; a seguir blogues de receitas vegetarianas. Tal como já referi, o meu maior foco estava nas evidências científicas de quanto o meu corpo beneficiaria dessa minha escolha. O meu lado compassivo para com a vida animal veio a ser alimentado apenas um pouco mais tarde, com as experiências que vivenciei depois, e com a adopção do Kovu (meu companheiro de quatro patas).

Na sequência de uma endoscopia que fiz numa clínica em Lisboa, fui atendido por uma médica, de origem italiana, que rapidamente se conectou comigo quando soube desta minha posição em relação à alimentação. Para além de ter sido incrivelmente prestável e atenciosa, isentou-me de pagar o valor da anestesia. No final do exame, enquanto nos despedíamos, escrevia-me num papel alguns nomes de grupos e movimentos da luta pelos direitos dos animais — confidenciou-me que para além de vegan, era também activista.

Esse momento levou-me a investigar sobre o activismo, e a questionar se não deveria também ter um papel mais activo nesse sentido. Cheguei inclusive a assistir a uma intervenção no centro de Lisboa, realizada por um grupo de activistas (uma extensão portuguesa de um movimento mundialmente conhecido). Este grupo, devidamente identificado com o símbolo estampado em t-shirts de cor preta, escolhia um local com muita afluência de pessoas e criavam ali um círculo. Os que permaneciam de pé nesse círculo usavam máscaras a cobrir os seus rostos, e seguravam cartazes com mensagens, ou computadores portáteis que exibiam imagens sensíveis de tortura de animais em matadouros. Os elementos fora do círculo distribuíam flyers, e também algumas mensagens através de megafones, para atrair e sensibilizar as pessoas que por ali passavam.

Como curioso que sou, gosto de ter o conhecimento empírico das coisas. Fui ao encontro deste grupo, com a intenção de participar futuramente numa destas intervenções, e conhecer de dentro para fora as suas reais motivações, e o seu impacto na sociedade. Durante duas horas, e com alguma distância, permaneci sentado num banco enquanto observava atentamente o que faziam. Quando finalmente me aproximei, fui subitamente abordado por um dos porta-vozes. Eu estava muito intrigado com tudo aquilo, e por isso aproveitei a ocasião para fazer uma série de questões que me inquietavam.

Confesso que tinha algum preconceito em relação às motivações particulares, que levam pessoas a prescindirem das suas vidas passadas para viverem inteiramente dedicados a uma só luta, e a uma só causa. Apesar disso, fui muito surpreendido pela conversa que tive com este activista. Não me demonstrou qualquer tipo de fanatismo ou misantropia. Pelo contrário, pareceu-me alguém bastante sensato e compreensivo. Respondeu educadamente às minhas questões provocadoras, não ofensivas, e convidou-me a participar numa acção que iria fazer na semana seguinte, com um movimento fundado por si.

Embora admire e reconheça a importância do trabalho que muitos activistas têm feito, percebi naquele dia que esse não seria o meu caminho, não obstante, senti-me muito inspirado por este encontro.

Na verdade, aquilo que mais me intrigou neste meio do activismo pelos direitos dos animais foi a descoberta da existência de santuários. Enquanto os Jardins Zoológicos, que são instituições lucrativas, e que apesar de actuarem na pesquisa e preservação de espécies, mantém animais selvagens em cativeiro para exibição pública, sob o pretexto de educação ambiental. Os santuários, que são locais sem fins lucrativos, destinam-se a reabilitar, e a albergar em livre ambiente, animais que foram vítimas de maus-tratos, tráfico ou exploração. Depois de tratados, estes animais são reintroduzidos nos seus habitats naturais, ou adoptados por pessoas que poderão cuidar deles em lugares com características idênticas. Os raros casos em que isso não é possível, devem-se à agressividade oriunda dos traumas que alguns destes animais desenvolveram, sendo por isso importante respeitar a abordagem de cada santuário. Nestes lugares, os tratamentos desses traumas são tão importantes quanto os cuidados físicos.

Enquanto pesquisava informação destes locais, assisti a alguns vídeos que eram testemunhos reais da incrível conexão entre as várias espécies do reino animal (humanos e não humanos). Lembro-me de ficar extremamente sensibilizado por ver uma vaca tranquilamente deitada no colo de um tratador, recebendo festas e reagindo positivamente a esse afecto; de assistir a uma galinha pousada no peito de um activista, enquanto ambos comiam do mesmo prato; ou de ver uma cabra a brincar tranquilamente com um porco, como se de um cão e um gato se tratasse.

Eram imagens que só esperava ver com animais que no ocidente consideramos como de estimação. Parecia-me algo tão surreal ver todo aquele amor, e toda aquela empatia entre diferentes espécies, em perfeita harmonia com o ser humano, sem qualquer tipo de medo ou de agressividade. A partir daí, cresceu uma enorme vontade de conhecer pessoalmente um destes santuários, de poder sentir com todas as células do meu corpo, e com toda a dimensão da minha alma, o impacto desta minha decisão que vai muito além da minha própria saúde.

 

210629_export-131.jpgFotografia: Simão Oliveira © 2021 (Sebastião - A Quintinha da Liz)

 

No passado mês de Junho, desafiei o meu irmão mais novo (também vegetariano) a passar um fim-de-semana em Viseu, para fazer voluntariado num santuário chamado “A Quintinha da Liz” — o lugar que mais me intrigou durante as minhas pesquisas. Era algo que já desejava há um anos atrás, sendo impedido pelas medidas restritivas resultantes da pandemia. Apenas seguia o trabalho que desenvolviam a partir das suas redes sociais, e apoiava pontualmente através de doações e de partilhas online dos seus pedidos de ajuda.

Há muito tempo que desejava fazer uma viagem com o meu irmão mais novo, de poder passar algum tempo de qualidade com ele, e de partilhar alguma experiência que fosse motivada por uma paixão mútua. Em vez de embarcar nesta aventura sozinho como planeava, achei que poderia unir esses dois desejos numa só viagem. Para além dele, levei também o Kovu. Contactei a Lara, responsável pelo Santuário “A Quintinha da Liz”, agendámos os dias da visita, acordámos as condições, e seguimos rumo a Viseu.

Estava de noite quando chegámos. A quinta parecia um lugar místico e um pouco sombrio. As folhas das múltiplas árvores mal se viam, e a enorme casa, com o seu aspecto rústico, fazia-se notar através de uma longa tira de led´s de cor verde que contornava o muro do alpendre. Contrastando com todo esse cenário, a Lara recebia-nos com o seu sorriso e a sua boa energia, mesmo depois de um intenso dia de trabalho como é habitual. Ela é a prova viva de que um ser humano não se mede por palmos, a pequenez do seu corpo está longe de conseguir suportar a grandeza da sua alma, tudo em si transborda. Carrega nela uma força do tamanho do mundo, e uma determinação inspiradora alavancada pelo respeito e empatia que tem pela natureza. Só desse modo poderia suportar tal missão, de cuidar sozinha de uma quinta que alberga cerca de setenta animais. Facto esse que muito nos surpreendeu, ao mesmo tempo que lamentávamos tal condição. Pois, embora ela conte com a presença pontual de voluntários, pude presenciar as dificuldades inerentes a essa condição. Não só os animais exigem a sua atenção, também a casa onde vive e hospeda os seus visitantes e voluntários, e a sua agrofloresta de onde nascem os deliciosos mirtilos, cogumelos, laranjas, e ervas aromáticas que utiliza na sua cozinha sustentável.

“A Quintinha da Liz” nasceu há treze anos, fruto das memórias de infância da Lara. Nasce do seu profundo desejo de reabilitar um lugar, com dois hectares, e com dois séculos de história, que é esta sua quinta familiar onde já tinha sido muito feliz. A quinta é financiada apenas pelas vendas do excedente dos produtos alimentares que a Lara cultiva; doações pontuais de visitantes e voluntários (em dinheiro ou em alimentação para os animais); serviço de hotel para cães; pelas férias solidárias, onde podemos permutar na casa da quinta, usufruir da tranquilidade característica daquele lugar, e das maravilhosas refeições vegetarianas preparadas pela sua guardiã. Ainda que tenha várias formas de conseguir dinheiro, este não chega em quantidade suficiente para fazer frente às necessidades da quinta e dos respectivos animais. É um problema partilhado pela maior parte destes santuários, e a pandemia só veio revelar ainda mais essas fragilidades.

Decidindo canalizar todo o dinheiro que tínhamos disponível para apoiar a causa, eu e o meu irmão optamos por partilhar o entusiasmo de acampar dentro da quinta. Depois de entregarmos as nossas doações alimentares, a Lara acompanhou-nos ao local indicado para o acampamento, e, começámos a missão de montar uma tenda às escuras. Desafio bem executado pelo meu irmão que se diz habituado a estas andanças. No entanto, surgiu outro desafio enquanto dormíamos. Sem sabermos porquê, o Kovu começou a ladrar incansavelmente, algo que só conseguimos contornar metendo-o dentro da tenda connosco. Embora esta se tenha transformado numa sauna, foi reconfortante acordar com ele entre nós.

Na manhã do dia seguinte, parecia que tínhamos acordado num lugar totalmente diferente. Tudo parecia mais amplo, e brilhante, graças aos raios de sol que cedo se fizeram notar. Se à noite o silêncio era apaziguador, de dia ressoava toda uma banda sonora orquestrada pela natureza, e pelos animais que já se passeavam livremente desde as seis da manhã, hora em que a Lara acorda diariamente para abrir as portas das vedações. No meio disto tudo, e tal como na noite anterior, o Kovu tentava afirmar-se com todas as suas forças, competindo com a natureza através do seu latido. Nessa manhã fez-se luz, pois percebemos a razão da sua inquietação. Descobrimos que estávamos acampados ao lado do Sol e do Nero, dois porcos enormes para quem o Kovu olhava fixamente e com muita tensão.

Depois de tomarmos o pequeno-almoço, fomos ao encontro da Lara para deixar o Kovu no espaço reservado aos cães, para que durante a nossa visita ele não entrasse em conflito com os animais que se encontravam soltos pela quinta. Esse espaço é uma divisão da casa com a porta sempre aberta, frente ao enorme pátio que tem nas suas traseiras. Foi quando, inesperadamente, demos de caras com um ninho de andorinhas no candelabro de tecto dessa mesma divisão. Ficámos boquiabertos ao observar tal fenómeno, e ao descobrir o mundo da Lara através dos seus olhos. Enquanto ela nos contava a bonita história das andorinhas terem entrado e repousado na sua casa, eu confirmava naquele momento como ela está inteiramente de braços aberto para receber a vida, para acolhê-la, e para elevá-la.

Deixámos o Kovu bem acompanhado com a Ollie, o Sebastião, e a Inca (os três cães residentes da quinta), e demos início à visita do santuário, guiados pela Lara que nos ia contando a história daquele lugar, e apresentando todos os animais que lá vivem. Todos eles têm histórias muito peculiares, teria de escrever um livro para vos contar todas elas, e estaria a negligenciar muitos detalhes que só a Lara tão nitidamente recorda. Por isso, é natural que ao longo do texto refira apenas alguns nomes dos que me chamaram particularmente à atenção.

Naquele fim-de-semana, estavam alojados na casa um casal muito simpático que também desfrutava e colaborava na quinta, juntamente com a sua filha que deveria ter sensivelmente seis anos de idade. Ela estava encantadíssima com os animais. Passeava livremente entre eles, e tocava-lhes com tamanha ousadia e curiosidade, digna de uma criança que se encontra a descobrir o mundo. Enquanto a observava, via-me a mim mesmo nos seus olhos. Com trinta e dois anos, foi assim que me senti naquele lugar, vendo tudo pela primeira vez, deslumbrado com tamanha proximidade, e com o facto de saber que nenhum daqueles seres acabaria no prato de alguém.

Coitada da Lara, que durante a visita, e enquanto partilhava algumas histórias, respondia às imensas perguntas com as quais a bombardeei — eu estava imerso em curiosidade.

Nem tudo era um mar de rosas, pelo meio fiquei a saber de alguns tristes factos sobre a indústria pecuária que desconhecia. Tal como ouvi nas palavras da Lara, o homem cria bebés deficientes para comer. A maior parte destes animais são alterados geneticamente para desenvolverem determinadas características que melhor servem à indústria e ao mercado. Alguns deles, como por exemplo as galinhas e os perus resgatados de aviários, são programados para crescerem excessivamente, produzirem ovos em quantidades ridículas, crescerem com a mesma cor, e com as penas muito frágeis. Tudo isso debilita os seus ossos e o seu sistema imunitário. Como é o caso da “Maria Antonieta”, uma perua com falta de penas nas costas, e o caso do “Magalhães”, um peru elegantíssimo que tem as penas quebradas na zona da “cauda”, e cujo peso do corpo já pouco suporta.

Maior parte destes animais têm pouco tempo de vida, e quem o afirma é a Lara que tão bem conhece as condições em que eles são resgatados. Conhece de perto a dor e sofrimento que sentem, mesmo querendo viver a todo o custo. Muitos deles passam o tempo todo doentes, e nem a medicação que tomam atenua o seu desconforto.

Actualmente, a Lara tem uma perspectiva diferente quanto a resgatar animais nestas condições. Diz que não voltará a fazê-lo no futuro, e questiona-se sobre qual a melhor acção a fazer. Devemos prolongar o sofrimento deles, ou acabar definitivamente com a sua dor? Parece polémica tal questão, vinda de quem diariamente se dedica a salvá-los há mais de uma década. Mas depois de tudo o que ouvi, senti, e observei, não consigo deixar de compartilhar esse seu pensamento, e de reflectir sobre a profundidade dessa questão. Onde começa, e onde acaba o nosso altruísmo?

Depois de feitas as apresentações, a Lara dirige-se à casa para preparar a refeição dos porcos. Enquanto isso, eu e o meu irmão passeávamos pela quinta trocando umas ideias, processando toda aquela informação, e toda aquela intensa experiência que estava ainda a começar. Aproveitei também para tirar algumas fotografias, e para me tentar aproximar dos animais que surgiam pelo meu caminho.

Pouco tempo depois, a Lara regressa com a comida do Sol e do Nero, e voluntariámo-nos para lhe ajudar com algumas tarefas; encher as dezenas de garrafões de água no chafariz da aldeia, transportados num carrinho de mão; carregar baldes enormes de feno desde a antiga adega da quinta, até ao abrigo dos bodes e das cabras; limpar as fezes que os animais vão largando pelo terreno; alimentar alguns animais; dar banho ao rabugento do Simón e à medrosa da Aurora (dois pequenos porcos muito caricatos).

No meio destas tarefas, aparece-me à frente o Martim, um bode de pêlo branco, que apesar de coxear de uma perna devido a uma artrose que tem no joelho, era muito habilidoso na arte de comer pasto. Enquanto os seus camaradas se inclinavam para comer do chão, ele pendurava-se num muro comprido para comer as folhas que cresciam no topo. Para além de ginasta, ainda apresentava características de modelo fotográfico. Segundo a Lara, o Martim adora ser fotografado, e devido ao problema do joelho faz uma pose muito elegante que se assemelha à de um cavalo.

Ao aproximar-se da hora de almoço, uma vez que iríamos usufruir de uma refeição na casa, juntamente com o casal, decidimos ajudar na cozinha. Eu estava deslumbrado dentro daquele espaço que transbordava uma variedade imensa de alimentos, todos eles orgânicos e naturalmente saudáveis. Entre as ideias e reflexões, que trocámos enquanto preparávamos o almoço, trouxe imensas aprendizagens sobre alimentação e sobre sustentabilidade.

Nada naquela casa é desperdiçado. Os restos dos alimentos são aproveitados para a compostagem, a água utilizada no lavatório da cozinha é reaproveitada para agrofloresta, e a água utilizada no lavatório da casa de banho é reaproveitada para a sanita (algo que me fez relembrar o quão surreal é o facto de que usamos água potável nas nossas casas para fazer desaparecer os nossos dejectos, quando em outros lugares do mundo morrem milhões pela sua escassez).

Enquanto se preparava a mesa, aproveitei para ir à casa de banho, no andar de cima, e pelo caminho ia conhecendo alguns cantos da casa. A casa da quinta parece um autêntico museu. Emana um charme rústico com os seus duzentos anos de existência. As suas paredes guardam memórias, cobertas de quadros, e de objectos muito peculiares. O seu altíssimo tecto, com enormes candelabros, lembrava-me os palácios da realeza do séc. XVII. Assim como os seus móveis, de estilo Luis XV, ou talvez Vitoriano (os mais entendidos que me perdoem pela ignorância), que me pareciam ser de madeira mogno, tudo material que resiste ao sopro do tempo para nos contar uma história.

O almoço que a Lara nos proporcionou estava incrivelmente delicioso. A longa mesa da sala de jantar ostentava toda uma riqueza de cores, texturas e sabores. Assim foi também a nossa conversa, onde escutámos atentamente às histórias que partilhava sobre si, e sobre a origem da quinta, aproveitando também o momento para nos conhecermos melhor uns aos outros.

De volta aos trabalhos da quinta, decidi ausentar-me por duas horas para ir até ao centro de Viseu comprar um saco de farelo de trigo — tencionava trazer de Lisboa, mas não tinha encontrado em grandes quantidades. Enquanto viajava de carro, aproveitei esse momento só, para conhecer os cantos da cidade, e para processar tudo o que estava a experienciar naquele dia.

Regressei no final da tarde, a tempo de ajudar a colocar os animais nos respectivos lugares, para que estes não fugissem para a vizinhança durante a noite. Depois disso, fomos buscar o Kovu, despedimo-nos da Lara e do casal, e regressámos à nossa tenda para comer e finalmente descansar.

No dia seguinte, aproveitei a manhã para observar e me aproximar dos animais com mais tempo, já o meu irmão dava uso à sua máquina para fotografar a quinta e os animais. A fotografia é uma das suas áreas de actividade profissional, e como tal, quis fazer um ensaio fotográfico para que a Lara pudesse usar nas suas plataformas digitais e apresentar a sua quinta ao mundo. (Ver fotografias)

Durante essa manhã, houve momentos que fomentaram ainda mais esta minha ligação indiscriminada com os animais. Apesar de ter sentido uma conexão, e uma empatia muito grande com todos eles, levei comigo algumas imagens em particular. A "Vida" no meu colo (uma pata bébé salva pela Lara); o “Martim” a posar para mim enquanto o fotografava; a “Baby-Chic” que detesta ser fotografada, fugindo sempre do olhar da lente, o que é uma pena sendo que é a galinha mais bonita que vi em toda a minha vida, ostentando um gradiente de cor que começa com cinzento-escuro no bico, e acaba em cinzento claro no rabo; a perua “Antonieta” que me tentava comer as calças; o peru “Magalhães” que se atravessava na minha câmera, todo altivo, achando-se o dono do pedaço; o porquinho “Simón”, que resmungava comigo por ter invadido o seu espaço, para fotografá-lo enquanto dormia; a cabra “Lissi” que se encostou a mim para lhe dar afecto; o cão “Sebastião” que viciado nas minhas massagens não me largava na hora da despedida.

Aproximava-se o final da manhã, hora que planeava regressar a Lisboa, quando a Lara amavelmente nos convidou para almoçar na casa — algo a que acedemos com toda a gratidão, pois sentimos que, durante aqueles três dias, desenvolvemos uma ligação muito bonita e genuína. Para além de uma exímia anfitriã, a Lara é um ser incrivelmente inspirador como não me canso de dizer. É uma daquelas forças da natureza que tenta alinhar ao máximo todas as suas escolhas, e todo seu estilo de vida, de acordo com os seus valores, e com os seus ideais. Num mundo cada vez mais desequilibrado, e numa sociedade cada vez mais uniformizada, ela mantém-se fiel a si mesma, e fiel aos seus princípios. Para mim, isso é uma qualidade rara e louvável em qualquer ser humano.

Por toda a profundidade desta experiência na quinta, e pela amizade que criámos com a Lara, creio que não houve um momento de despedida, mas sim um abraço de “até breve!”.

“Eu não tenho dúvidas de que é parte do destino da raça humana, na sua evolução gradual, parar de comer animais, tal como as tribos selvagens deixaram de se comer umas às outras quando entraram em contacto com os mais civilizados.”

Henry David Thoreau, Walden

PS:. Depois de terminar e de partilhar este texto com a Lara, soube da triste notícia de que o Sebastião tinha falecido de forma inesperada na noite anterior.

Nunca se está preparado para ver partir quem amamos, e para ela, que apesar de estar naturalmente habituada a ver partir os animais que estão ao seu cuidado, todas as vezes são como uma primeira vez. No entanto, devemos focar-nos no facto de que o Sebastião foi um animal muito feliz na ”A Quintinha da Liz”. Não tenho a menor dúvida disso, tive o privilégio de testemunhá-lo através do seu olhar.

Desejo que um dia todos os animais possam viver uma vida digna como a que ele viveu na quinta.

Ao Sebastião.

 

 

-

Se quiseres apoiar “A Quintinha da Liz” poderás fazê-lo através de donativos monetários, alimentares, ou através de voluntariado. Poderás também saber mais através do instagram ou do facebook.

IBAN QtaLiz: PT50003508170069555390065

PAYPAL: a.quintinha.da.liz@gmail.com

Teaming: https://www.teaming.net/aquintinhadaliz

Teaming é uma plataforma online para angariar fundos a favor de causas sociais com micro doações de 1€ por mês. A sua filosofia é baseada na ideia de que 1€ não tem muito impacto se doado sozinho, mas se juntarmos forças, podemos tornar possíveis lindos projectos!

30
Jun21

Ser Livre Numa Casca de Noz

Recentemente, no âmbito de uma formação, fui desafiado a reflectir e a partilhar que aspectos da minha vida precisariam ainda de ser trabalhados hoje, para viver a vida que eu idealizo amanhã. Enquanto passeava pelas Salinas do Samouco, sentei-me debaixo de uma árvore e escrevi a seguinte reflexão:

 

WhatsApp Image 2021-06-23 at 23.33.54.jpeg

 

Aos vinte e oito anos de idade, impulsionado pelo medo de chegar ao fim da vida e descobrir que não vivi, tomei a primeira de muitas decisões que vieram revolucionar esta minha breve passagem pelo mundo. Se até ao dia dessa grande decisão todas as minhas escolhas tinham sido orientadas pela razão, daí adiante a minha vida passou a ser orientada pela intuição.

Quando silenciei a minha mente para escutar a minha voz interior, que havia sido calada pelas exigências do mundo moderno, deu-se a descoberta de uma força avassaladora. Tornou-me mais genuíno, e resgatou o sentido da minha vida que tinha sido tomada pelo automatismo e pela velocidade frenética em que vivemos. Hoje tomo decisões guiado pela intuição, e só depois procuro a razão para explicar o que ela decidiu — o lado racional garante a sobrevivência, mas não garante a vida.

Quanto ao futuro, não faço grandes planos, deixo apenas fluir. Quanto maior a capacidade de escutar e sentir a nossa voz interior, menor o medo da viagem.

Se tenho sonhos? Apenas quando durmo. Acordado tenho desejos, e a minha maior ambição é trazer consciência a esse processo de desejar. Quando a fonte do desejo ganha uma expressão inconsciente passamos a viver em modo compulsivo, na incessante missão de satisfazer tais desejos, perdendo aos poucos a capacidade de observar e absorver a beleza da simplicidade da vida. Fugimos de nós próprios nessa busca obsessiva pelo prazer, tornando-nos escravos do desejo e prisioneiros dum ciclo vicioso.

Ao contrário do que nos vendem, prazer não é felicidade — se assim fosse seríamos todos felizes.

Quero depender cada vez menos da dimensão física para estar em paz comigo e com o mundo, para viver feliz e apreciar os pequenos detalhes da vida sem me apegar. Para isso, trabalho internamente para que cada vez mais me sinta como Hamlet gostaria de se ter sentido:

“Eu podia ser livre numa casca de noz, não importa o lugar onde eu esteja, o importante é a minha consciência.”

05
Abr21

Nada é Verdade

Cada vez mais acredito e sinto que nada surge por acaso no nosso caminho. Cada ganho e cada perda, sejam elas experiências ou pessoas, podem ter uma função didática na nossa vida — uma estrada de autoconhecimento.

Para o bem e para o mal, e até isso é uma questão de perspectiva, cada escolha, cada renúncia, cada acção, cada reação, cada experiência, e cada pessoa, traz-nos um ensinamento, sobretudo quando o objecto em si carece dessa pretensão. Muitas vezes, esses ensinamentos são apenas percepcionados anos mais tarde, como por exemplo a música que me inspirou a escrever esta reflexão.

 

okokok copy.jpg

 

Nada é verdade é o nome de uma música na qual participei com a criação do instrumental, e que conta com a letra e voz de um grande amigo. Foi o single de lançamento de um álbum que desenvolvemos em conjunto, também com o mesmo nome, e que lançámos em 2016. Naquela altura já era um dos temas do álbum que mais admirava, mas só hoje entendo a verdadeira razão dessa admiração. Vai muito além da sua estética sonora. Eu fui verdadeiramente tocado pela sua mensagem e, se na altura a compreendia num sentido literal, hoje sinto-a num sentido metafísico. Sinto-a como se sobre mim falasse, e como se tais palavras tivessem sido escritas pelas minhas próprias mãos. 

A metamorfose que se deu na minha vida aos vinte e oito anos trouxe-me a um lugar em que esta música passou realmente a fazer-me sentido. Foi como uma semente que sorriu para mim para que eu a guardasse, e para que mais tarde, no momento certo, pudesse finalmente germinar. Mas sobre sementes falarei noutra altura.

Este é o poder da arte, em que a interpretação de uma obra transcende o sentido original do seu criador a partir do momento em que ela é partilhada.

Voltando ao cerne desta minha reflexão.

Admito a possibilidade de que esta minha ideia seja uma tentativa vã de romantizar a vida para justificar a minha fome de sentido. Se assim for, prefiro alimentar essa fome para que não seja vencido por um qualquer tipo de niilismo que possa crescer dentro de mim. Pode parecer paradoxal, mas é o facto de saber que a vida não tem sentido, e que nós não temos nenhum propósito ou missão, ou como lhe preferirmos chamar, que me faz escutar e observar os sinais do universo e interpretá-los de uma forma que dê brilho e riqueza a esta minha breve passagem pelo mundo. Enquanto realizo essa prática e essa busca, reflete-se naturalmente nas minhas ações, no meu temperamento, na minha conduta, e todos à minha volta beneficiarão disso, inclusive eu próprio, porque a vibração que eu emano para fora retornará para dentro. É essa mesma busca que me dá o entendimento de que, tal como tudo na natureza, eu nasci para viver em simbiose e não como parasita.

Se existirá vida depois da morte? Se a “minha” alma reencarnará noutro corpo? Não sei, duvido de quem saiba e tampouco me importa. Embora o questionamento seja para mim uma prática diária, não são essas as questões que me ocupam. Viverei a ressignificar a vida no presente e enquanto ainda respiro, apenas para não enlouquecer e/ou viver refém da minha própria sombra. 

“O contrário da morte não é a vida, é o nascimento. Vida é o que existe entre esses opostos.” Eduardo Marinho

Ainda que não acorde todos os dias a pular de alegria, sou inteiramente interessado e fascinado pelo que é vida, e tudo o que me importa é tentar compreendê-la e amar todas as suas formas. Quanto à morte, não a temo mais, contudo, respeito-a. Saber da sua existência faz-me interessar ainda mais pelo que é vida. Trabalho internamente a sua aceitação e converto-a em combustível para viver, e não para sofrer — ela é, e carrega, apenas mais um ensinamento.

Dale Carnegie citou, no seu best-seller Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, uma frase de William James: “O princípio mais profundo da natureza humana é a fome de reconhecimento.” Embora subscreva esta sábia afirmação, eu trocaria a fome de reconhecimento pela fome de sentido. 

Ainda que nada seja verdade, esta é a minha verdade e a que me mantém vivo.

18
Jan21

Mil Quilómetros de Autodescoberta (3/3)

Fazia já alguns anos que não nos víamos.

Combinámos numa esplanada perto de uma zona industrial, ponto de encontro habitual dos seus amigos e colegas, quando terminam os seus horários de trabalho. Ali estava eu, um novo elemento que se juntara, por curto tempo, àquilo que me parecia ser uma pequena família. Pareceram-me todos bons rapazes, nomeadamente o companheiro da minha amiga que se fez apresentar com muito boa energia, algo que me deixou feliz por ser o tipo de pessoa com quem ela se relacionava romanticamente. O teor das conversas que tivemos até se aproximar o pôr do sol foi apenas relevante a um nível pessoal, mas posso adiantar que foi uma tarde bem passada e em boa companhia.

Despedi-me de Santo André com o sentido de dever cumprido e uma grande satisfação por perceber que os elos de amizade nunca se quebram apesar da distância ou da regularidade com que se renovam. Serviu igualmente para relembrar o quanto aprecio visitar os meus íntimos mais distantes e de forma inesperada. Era quase noite em Santo André e senti que não seria esse o lugar onde eu queria repousar. Na falta de ideia melhor, tomei a decisão de partir até ao Algarve, minha terra natal.

 

IMG_20190926_135114

 

Desde os seis anos de idade que vivo em Lisboa e quase todos os anos costumava passar alguns dias em Albufeira com a minha família ou com amigos. Uma vez que interrompera essa tradição nos últimos dois anos, decidi juntar o útil ao agradável. Fiz-me novamente à estrada, em direcção a Faro, para assistir a uma actuação musical num bar. A estrela da noite era uma outra amiga, estando este título muito aquém daquilo que realmente representa para mim e com quem partilhei vários palcos no passado.

Ainda no início da viagem e já de noite, à saída de Santiago, entro numa estreita estrada com dois sentidos, repleta de curvas e contracurvas e sem qualquer tipo de iluminação. Tudo o que tinha à minha volta eram apenas árvores que mal viam. A luz dos faróis eram a única coisa que tinha a meu favor e raríssimos foram os carros com que me cruzei. No silêncio da noite e durante os largos minutos que passava sozinho naquela estrada, cheguei a recear o pior e a pensar como me poderia safar se de repente surgisse ali um contratempo. Um pneu furado, uma lâmpada fundida, uma curva mal feita, uma avaria electrónica, entre muitas outras possibilidades. Além disso, a bateria do meu telemóvel já não dava sinais de vida.

Perceber que pensar no assunto não impedia a sua concretização trouxe-me de volta ao momento presente. Cada minuto que passava a pensar em situações que poderiam acontecer e a encontrar em soluções para as mesmas era tempo perdido. Era tempo em que a minha mente estava projectada no futuro, enquanto o presente me passava entre os dedos. Não me traria qualquer vantagem ou utilidade.

O que sabemos do futuro é que um dia o nosso corpo perderá as suas funções vitais. A única garantia que temos é o momento presente e é nele que devemos estar. As adversidades que nele possam surgir são grandes oportunidades para conhecermos os nossos verdadeiros limites e aumentarmos a nossa capacidade de resiliência. A nossa sensação de controlo na vida é uma mera ilusão. Tal como referi anteriormente, apenas controlamos a forma como nos movemos. Não estou com isto a desencorajar ninguém a ser cauteloso, no entanto é necessário algum equilíbrio para que não nos tornemos numa pessoa sistemática. Demasiado planeamento bloqueia-nos a capacidade de lidar com imprevistos, gerando sentimentos de stress e ansiedade. Repito, esta viagem era também sobre autoconhecimento em eventuais situações de desconforto.

Ao permitir-me desfrutar da adrenalina do caminho até Faro, a minha única preocupação passou a ser apenas a de não atropelar nenhum animal que atravessasse a estrada no meio de toda aquela escuridão. Quando avistei a placa branca que mencionava o nome Algarve, respirei de alívio e pude finalmente relaxar. Certamente, há quem faça aquele trajecto com uma perna às costas, mas a quem lá passa de noite e sozinho pela primeira vez, posso dizer que é uma experiência um tanto sinistra.

Chegando finalmente a Faro, procurei um lugar onde pudesse jantar alguma coisa antes do concerto. Algo que foi bastante fácil, por comparação à viagem. Logo depois, dirigi-me até à cidade velha entre as Muralhas de Faro e encontro o bar onde a minha amiga estava prestes a actuar, ficando por ali a contemplar a sua incrível presença em palco, fazendo-se acompanhar de um estonteante sorriso, algo que proporcionava uma sensação familiar aos meus olhos e aos meus ouvidos. Após o concerto, ela fez-me uma visita guiada pela zona de lazer da noite de Faro, nada comparado com a diversidade da noite de Albufeira que tão bem conhecia e da qual fui um grande entusiasta durante muitos anos. Despeço-me com um abraço profundo e sigo para um parque de estacionamento frente à Ria Formosa, perto das muralhas. Não me restando grande alternativa face ao cansaço que sentia, acomodei-me dentro do meu carro para repousar até ao nascer do sol.

Acordado pela luz do sol e pelo ruído da agitação matinal, decidi voltar à estrada, rumando a Albufeira. Começando a faltar-me recursos, ideias, e com compromissos pendentes, sendo esta uma viagem de introspecção e de reencontro comigo mesmo, nada melhor que voltar às minhas raízes antes de regressar a Lisboa.

Pela primeira vez, caminhei sozinho pelo centro antigo de Albufeira, um lugar muito marcante na vida dos meus pais. O verão tinha terminado e ainda se fazia notar a imensa presença de turistas. Estávamos a poucos meses de enfrentar o início da pandemia que estamos hoje a viver. Também pela primeira vez, e devido ao calor que sentia, vi-me obrigado a tirar a roupa que me cobria o tronco, para que pudesse continuar a caminhar confortavelmente entre as bancas, lojas e restaurantes - à procura do bar que em tempos foi explorado pelo meu pai em conjunto com duas irmãs e a minha mãe, e sobre o qual ouvi muitas histórias desde a minha infância.

Era algo que nunca havia feito em público a não ser na praia, dado o complexo que tinha com o meu corpo e que se foi desvanecendo ao longo dos anos. Esse complexo era derivado da condição física com que nasci, fazendo com que o desenho do meu corpo fugisse um pouco do modelo padrão esperado. Na verdade, era mais pelo desconforto de me sentir constantemente observado e não propriamente por saber que carrego tais diferenças, porque a aceitação do meu corpo era algo que já me acompanhava desde a adolescência. No entanto, nunca deixei de utilizar mecanismos na tentativa de ser observado e tratado pelo que sou e não pela matéria que transporta o meu Eu, a minha consciência e a minha alma.

Enquanto escrevo isto, dou por mim a questionar se nos últimos quinze anos terei realmente sido acompanhado pela aceitação que mencionei ou se por um simples sentimento de conformismo. Creio mais na segunda hipótese.

Ao saber que nada poderia fazer para mudar esta condição, mostrou-se mais prático e menos castrante conformar-me com a realidade e não passar o resto da vida a remar contra a maré. Esta mudança de paradigma trouxe-me autoconfiança e lançou-me para a vida. Fez-me atrair uma série de coisas positivas como experiências, pessoas e conquistas. Passei a olhar com outros olhos para a minha imagem reflectida no espelho. Começando a focar-me nas coisas positivas, procurando identificar o que mais gostava e a imaginar formas criativas de ocultar o que menos gostava. Mas tudo isto teve um preço. Um preço que paguei sem saber e que só se fez notar anos mais tarde. Como uma espécie de despesa de manutenção que se faz subtrair todos os meses no saldo bancário e que os mais distraídos nem dão conta.

A aceitação, no verdadeiro sentido da palavra, dá-se quando abraçamos a realidade existente com todas as suas nuances no mundo interno e no mundo externo. Isto só começou realmente a acontecer comigo quando completei vinte e oito anos de idade e após ter passado por uma experiência que me fez colocar toda a minha vida em perspectiva.

Ao contrário da autoconfiança, que é baseada na noção de competência, a auto-aceitação, que indica uma profunda aceitação de nós mesmos com todas as nossas limitações e imperfeições físicas e/ou mentais, materializou-se quando, num acto espontâneo, decidi tirar a camisola em público ou quando me dispo neste testemunho. Faz parte de todo um processo que começou desde que vim ao mundo e que se tem tornado cada vez mais consciente e impactante nos últimos três anos, desde que mergulhei profunda e conscientemente nesta viagem de autoconhecimento.

Depois da longa caminhada pelo centro de Albufeira, encontrei o bar que anteriormente referi, o Daimlers. A nova gerência pouco ou nada se lembrava do espaço, agora inteiramente renovado à excepção da placa que mencionava o seu nome. Decidi voltar à estrada nacional e regressar a casa.

Durante a viagem, dei por mim com um sentimento de realização e de propósito cumprido. Apercebi-me de que, durante estes dias, não me ocorreu qualquer pensamento que me remetesse à relação tóxica com a substância de que falei no início e cujo término me motivou a embarcar esta aventura. Dei por mim com uma série de respostas encontradas e novas questões em aberto, e fui arrebatado por uma enorme vontade de me aventurar em mais experiências na companhia de mim próprio. Não me tornei misantropo nem tenho pretensões de ser um eremita, apenas dei mais um passo decisivo para quebrar o medo da solidão e conhecer a solitude.

Algo muito interessante e revelador que percebi nesta viagem foi que embora caminhasse sozinho, sempre me senti bastante acompanhado. Seria de esperar que quando estamos sozinhos por muito tempo e em lugares que desconhecemos, sentimos uma maior necessidade de socialização do que sentimos no nosso movimentado quotidiano. Na maioria dos sítios por onde passei as pessoas eram dotadas de uma maior predisposição para ajudar o próximo ou até mesmo para conversar com um estranho - o que muitas vezes resulta em surpresas agradáveis e que nos leva a novos lugares. O contrário também pode acontecer, é um facto. Para o evitar, devemos guiar-nos pela intuição. Não vivemos num mundo onde todos nos querem bem, vivemos num mundo onde o desejo de uns se sobrepõe à liberdade de outros. Porém, sabemos que não é somente com estranhos que podem acontecer surpresas desagradáveis. Quantas vezes vemos isso presente entre as nossas famílias e círculos de amigos!?

Cada vez mais acredito e sinto que somos todos parte de uma família humana.

Após quatro dias e mil quilómetros de movimento, regresso a casa mais conectado comigo e a saber um pouco mais sobre mim.

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

05
Jan21

Mil Quilómetros de Autodescoberta (2/3)

Foi uma curta viagem de quarenta minutos em estrada nacional, com uma vista bem mais agradável e próxima da natureza do que teria sido pela auto-estrada. Raramente me cruzei com outros carros e, sendo uma estrada estreita, senti-me mais perto dos campos e quintas envolventes, muitas vezes com árvores muito próximas que criavam uma sombra agradável, ainda que intermitente. O calor ainda era intenso nos últimos dias de Setembro.

Apesar de ter desfrutado da viagem e da minha própria companhia, houve uma altura em que algumas questões que tinham surgido no dia anterior, quando bati à porta do casal amigo de Trindade, voltaram a aparecer. Talvez porque agora seguia inteiramente para o desconhecido. Quando deixei a cidade de Beja, deixei de ter um plano. O facto de não ir ao encontro de alguém familiar, de não conhecer o local para onde ia e de não saber se encontraria um sítio para estacionar e pernoitar, provocava-me alguma insegurança.

Tudo isto fez-me novamente questionar o sentido do que estava a fazer. Eu estava sozinho, sem conta em qualquer rede social e muito menos internet para partilhar fotografias que validassem esta minha experiência, ou uma mensagem que contornasse a ausência de uma companhia. É aqui que surge uma questão que coloquei a mim próprio e que hoje coloco a quem se atravessa no meu caminho, com o objectivo de provocar reflexão. Se estivesses sozinho no mundo, sem ninguém a observar-te, a vida que escolheste continuaria a fazer-te sentido?

Foi à boleia desta reflexão que segui viagem, enquanto apreciava a vista em cada quilómetro. Se não estivermos bem connosco e não soubermos desfrutar da nossa própria companhia, não conseguiremos relacionar-nos com o que nos rodeia de forma saudável. Usaremos pessoas e coisas sempre de uma forma egoísta, com o objectivo de satisfazer desejos, preencher vazios e suprir carências e necessidades. Este tipo de relação com o mundo externo faz com que nos apeguemos e tentemos possuir tudo aquilo que nos faça felizes.

Mas o que experienciamos, na verdade, é o prazer e não a felicidade. Segundo um provérbio Hindu, “o prazer é a sombra da felicidade”. Buscar o prazer no mundo externo é uma coisa natural ao ser humano, somos feitos de matéria mas é também a experiência sensorial que alimenta a nossa alma. No entanto, é importante que exista um equilíbrio nesta busca. Um equilíbrio que nos impeça de cair num desejo incontrolável, que nos salve da obsessão, da dependência, da morte da liberdade interior, do momento em que a busca, o desejo, se revela, afinal, um obstáculo à Felicidade.

A Felicidade é um estado permanente que deve ser procurado no mundo interno. Se a perseguirmos na dimensão física, estaremos constantemente inconstantes e insatisfeitos. No mundo externo tudo é efémero e impermanente. A um nível mais profundo acabaremos por entender que nada está realmente sob o nosso controlo a não ser a forma como nos movemos. Só é possível perceber isto quando olhamos para dentro e experienciamos a verdadeira consciência. Uma vez tocada essa consciência, acontece um processo de descoberta. A mudança será o resultado natural dessa descoberta. Pois ao contrário do mundo externo, a consciência é algo imutável e é nela que reside o nosso verdadeiro Ser. Nada melhor que a seguinte frase do romancista francês Jules Barbey d'Aurevilly para concluir esta minha reflexão: “O prazer é a felicidade dos loucos, enquanto a felicidade é o prazer dos sábios.”

Chegando a Mértola, e antes que o sol se recolhesse, fiz um reconhecimento desta vila museu com o objectivo de perceber que locais teria para visitar no dia seguinte. Para além disso, tinha o desafio de procurar um sítio apropriado para estacionar o carro e nele pernoitar.

Encontrei um lugar interessante junto ao rio e a uns metros de um hotel, imaginando a belíssima vista que teria ao acordar com os raios solares trespassando os vidros do meu carro. Igualmente atraente era a ideia de estar rodeado de árvores e não vizinhos. Mas ocorreu-me que poderia ter o sono interrompido pela presença das autoridades locais por estar estacionado no meio de nenhures, pelo que optei por ficar num parque destinado a auto-caravanas, a poucos metros dali, preservando a experiência que imaginei - substituindo as árvores por auto-caravanas.

Entretanto fez-se noite e fez-se fome. Após umas voltas pela vila, a minha intuição dizia-me que nenhum restaurante naquele lugar me iria providenciar uma refeição vegetariana. Escolhi aleatoriamente um deles e improvisei, pedindo uma sopa de legumes, um prato de feijão e arroz acompanhado com salada e umas fatias de pão alentejano. De volta ao parque de auto-caravanas, tento preparar a melhor cama possível recolhendo os bancos traseiros do carro e fazendo duas camadas de sacos-cama para ter algum conforto. Não foi, de todo, o melhor lugar onde alguma vez dormi. As duas camadas revelaram-se insuficientes para o conforto da minha (unicamente possível) posição fetal.

 

IMG_20190926_082436 copy2.jpg

 

Acordei como previa, numa luminosa manhã, e desloquei-me até ao lugar em que tencionava repousar na noite anterior para escutar o som da natureza, sem a interferência de vizinhos. Enquanto tomava o pequeno-almoço sou surpreendido por uma orquestra de chocalhos, tocados por um rebanho de ovelhas do outro lado da margem, em simultâneo com o chilrear de pássaros cuja espécie desconheço. Sentado junto de uma mesa de parque de merendas feito em material reciclado, e tentando focar o rebanho do outro lado do rio, dou conta de um incrível espelho horizontal que existia entre nós, reflectindo a silhueta das árvores e o rosto do sol.

Decidi registar em vídeo aquilo que se estava a revelar uma das melhores manhãs, senão a mais admirável, que alguma vez tive. Hoje reconheço a total inutilidade desse feito, pois os limites da tecnologia apenas permitem registar a dimensão estética de cada momento e não as que a transcendem. Permaneci sentado, imóvel e de olhos fechados, durante cerca de uma hora. Talvez estivesse a meditar sem a pretensão de o fazer. Para mim, foi um enorme feito. Sempre que me propus meditar, nunca consegui ignorar os pensamentos que me tentavam alcançar e que habitavam a minha mente mais tempo do que eu gostaria.

Li, algures, um livro em que o autor dizia que a mente, parte de toda esta incrível e complexa máquina que é o corpo humano, é uma ferramenta, e o acto de pensar deve ser feito apenas quando necessário. O problema é que na sociedade onde vivo e na geração a que pertenço, observo que perdemos o domínio desta ferramenta e nos tornámos escravos dela. Pensar tornou-se um estado natural permanente.

Um dia normal na cidade é passado na companhia de multidões, carros, aviões, anúncios, outdoors, mupis, cartazes, luzes, televisões, smartphones, montras, e muito mais. Do acordar ao adormecer, somos constantemente expostos a uma imensidão de imagens e informações para o nosso cérebro processar, fazendo do nosso subconsciente um depósito de conteúdo que condiciona o nosso estado de consciência e de presença - aquele que usaríamos para recuperar o controlo sobre a nossa mente ou abrandá-la. Caso contrário, tornamo-nos reféns da nossa própria mente e afogamo-nos num mar de pensamentos fortemente agitado, à maré do ambiente urbano e tecnológico pelo qual passamos, sem viver.

Após ter meditado, iniciei a caminhada para explorar a vila, de mochila às costas.

Ali a vida acontecia calmamente. Poucos carros circulavam pelas ruas e as pessoas que não caminhavam com serenidade, repousavam nos bancos espalhados pela vila. Ao longo dos inúmeros lugares estrategicamente pensados para contemplar a incrível vista no decorrer da subida até ao Castelo, a distinção entre turistas, trabalhadores e moradores era feita somente pelo traje com que cobriam os seus corpos.

Após explorar cada miradouro, cheguei ao Castelo de Mértola, situado na confluência da Ribeira de Oeiras com o rio Guadiana. Visitei a alcáçova do Castelo onde se encontra o Campo Arqueológico de Mértola e onde podemos ver as ruínas de um bairro muçulmano. Visitei a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, único exemplar de arquitetura religiosa islâmica remanescente no país e, por último, o cemitério, com uma incrível vista para a ponte da Ribeira de Oeiras. Ainda no Castelo, ao conversar um pouco com uma funcionária que se encontrava na sua pausa de cigarro, apercebi-me que ainda havia alguns museus que eu poderia ter visitado, mas não tencionava passar o tempo em lugares fechados, muito menos com bilheteira, pois parte do desafio era utilizar o mínimo dinheiro possível, tirando o máximo partido do que teria à minha mercê.

Pelo meio da tarde, senti que já tinha retirado de Mértola o que havia para retirar. O propósito desta viagem era estar em constante movimento, sem permanecer no mesmo lugar mais do que uma noite.

Depois de algum tempo a pensar qual seria o meu próximo destino, decidi rumar em direção a Vila Nova de Santo André, para visitar uma amiga muito especial dos meus tempos de faculdade, algo que já adiava há muito tempo. Depois de confirmada a disponibilidade dela, voltei à estrada nacional, aproveitando para descobrir algumas vilas e aldeias pelo caminho. Ao chegar a Santiago do Cacém, uma cidade um pouco mais desenvolvida e movimentada, comecei a desconfiar que, com o pouco tempo que tinha, não teria muita sorte em encontrar um lugar seguro e tranquilo para passar a noite no carro. Adiei essa resolução para depois e concentrei-me em chegar a Santo André...

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

10
Dez20

Mil Quilómetros de Autodescoberta (1/3)

Num passado não tão longínquo, eu costumava afirmar que entrar no carro e viajar sem destino era uma das coisas que mais adorava fazer. Sobretudo no silêncio da noite, na companhia de mim próprio e por impulso da alma. Nessa altura não entendia a razão dessa vontade súbita que surgia quando menos esperava. Estaria eu a fugir de algo? Ou seria uma ávida vontade de Ser, de descobrir, de me perder, de me encontrar? Talvez tudo isso e muito mais. Verdade seja dita. Nenhuma dessas viagens foi para além das fronteiras do distrito de Lisboa.

Que aventureiro!

Dizia eu, para mim próprio, há um ano, e num sarcástico tom enquanto questionava a profundidade dessa minha vontade.

Se te julgas um espírito livre e gabas essa tua vontade de viajar sozinho e sem destino, por que nunca foste além dos limites da bolha da Estremadura? Qual é o medo que te acobarda? Deixa-me adivinhar!

Solidão…

Se algum dia tocares o limite dessa bolha, ousares furá-la e permaneceres fora dela por mais do que uma noite, quando voltares, quero que me contes.

Quero que me contes como foi conviver contigo, com o silêncio, com o vazio, com os teus pensamentos, com os teus fantasmas e com os teus medos. Se, quando voltares, desejares novamente partir, então poderás dizer que é das coisas que mais adoras fazer.

Na manhã do dia 24 de setembro de 2019, ainda o sol não tinha nascido, eu iniciava uma das aventuras mais desafiantes da minha vida. Entrei no meu carro com o depósito cheio, levando na bagageira dois sacos-cama, um cobertor, uma mochila que guardava pouco mais de duas mudas de roupa, uma escova para o cabelo, uma pasta dentífrica, um sabonete.

No dia anterior, tinha decidido romper com aquilo que se estava a revelar o início de uma relação tóxica e compulsiva com uma substância que a maioria de nós conhece como haxixe, algo que pode tornar-se o caminho mais fácil para a meditação e ser a eterna companhia de almas solitárias. Falarei sobre esta minha relação noutra ocasião.

Parti em direcção a Trindade.

 

IMG_20190925_175827

 

Trindade é uma antiga aldeia remota que pertenceu ao distrito de Beja e cuja população se reduziu a um terço daquilo que outrora foi. Escolhi este como o primeiro destino desta aventura, motivado por uma memória que já há três anos me assaltava os pensamentos - desde que sonho viver numa pequena comunidade num lugar que tivesse escapado do envenenamento constante da terra e do homem, onde eu pudesse respirar profundamente, escutar o silêncio e observar o vazio.

Fabricamos ruído para preencher o silêncio e informação para preencher o vazio. Temos perdido Sabedoria ao privilegiar o Conhecimento. Não estou a sugerir que permaneçamos ignorantes, mas este desequilíbrio espelha o estado em que se encontra a humanidade. Ao privilegiar o Saber, adormecemos o Sentir.

Faço esta reflexão porque tenho observado que esse Conhecimento não nos tem tornado mais esclarecidos, mas sim mais confusos. A Sabedoria de um pensador está em não alimentar ilusões sobre o próprio saber. Tal como Sócrates, “Só sei que nada sei, e o facto de saber isso, coloca-me em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa.”

Voltando à viagem:

Conheci esta aldeia nos meus tempos de infância, quando o meu pai decidia levar-nos em família para gozar o período de férias de Verão fora da cidade onde permanecíamos durante todo o ano. O habitual era passarmos duas semanas no Algarve, lugar onde os meus pais viveram uma parte da sua história, da qual eu sou fruto. Mas, certo dia, o meu pai tomou a iniciativa de desviar o caminho com o intuito de visitar um velho amigo dos seus tempos de serviço militar obrigatório. Não me lembro que idade tinha eu nessa altura mas recordo-me de termos lá voltado quando tinha dez anos e não foi só de passagem. Tivemos uma estadia de uma semana na casa de família deste seu amigo, que nos recebeu com grande hospitalidade, cedendo-nos o quarto da sua filha mais nova que curiosamente tinha a mesma idade que a minha irmã, tal como o seu irmão mais velho tinha aproximadamente a mesma idade que eu.

Era uma casa rústica. A porta principal dava para uma pequena rua onde ficava o café do qual o amigo do meu pai era proprietário. A porta traseira dava para uma série de quintais onde os habitantes da aldeia produziam os seus legumes e albergavam os “seus” animais, que lhes fornecem alimento. Por detrás dos quintais existia um enorme descampado onde podíamos contemplar o horizonte, parecendo que estávamos sozinhos no mundo e que tudo o que havia para estimar e valorizar estava ali, dentro daquela aldeia.

Recordo-me de passar as tardes alternando entre o café, agora fechado, ponto de encontro das pessoas que ali viviam, e os passeios pela aldeia explorando cada cantinho que ali havia por descobrir. Recordo-me de brincar nas escadas da igreja com as crianças que ali conviviam livremente e longe de qualquer tipo de tecnologia que estimulasse o seu isolamento. Tudo o que havia à nossa mercê eram bicicletas, bolas de futebol, as pipas que comprávamos no café para petiscar, os nossos corpos e a nossa fértil imaginação. Recordo-me dos finais de tarde quando o meu pai regressava com o seu amigo dos serões de pesca e de caça habituais daquelas gentes, estava eu sentado no sofá a ver os filmes preferidos do filho do seu amigo, ou a brincar no quarto com sua coleção de bonecos, até chegar a hora de nos reunirmos à mesa para desfrutar de uma bela refeição de comida orgânica em família.

Vinte anos depois, e após 230 quilómetros de viagem pela estrada nacional, encontro-me novamente em Trindade.

Estranhamente, ao chegar à aldeia, senti-a familiar. No início da rua onde se situa a dita casa, perguntei pelo amigo do meu pai a duas senhoras idosas, que se encontravam perto de uma das duas paragens de autocarro que lá existem. De forma contida, responderam-me que não o conheciam. Avanço mais um pouco e ao estacionar perto da casa que então reconheci, junto dos humildes quintais agora reduzidos a um terço, vejo um senhor com um ar muito simpático e dirijo-lhe a mesma pergunta que havia feito às senhoras desconfiadas. Depois de uma curta troca de perguntas e respostas, o mesmo acabou por me confirmar que a família que eu procurava vivia, ainda, na mesma casa. Acompanhou-me amistosamente até à porta e chamou em voz alta pelo nome que eu esperava.

Foi neste momento que surgiram na minha cabeça as primeiras questões acerca desta aventura. Durante os segundos em que aguardava por alguém que me abrisse a porta, perguntava-me o que estaria ali a fazer sozinho, se me iriam reconhecer, qual o propósito e o sentido daquela visita e sobretudo o que iria eu dizer após tantos anos, receando gerar ali um momento constrangedor.

Creio que estas são dúvidas comuns nos dias de hoje, entre os meus semelhantes. Durante a nossa formação enquanto seres humanos no mundo moderno, temos cada vez mais ferramentas e condições para nos colocarmos numa posição de conforto perante vários aspectos da vida, e não existe nada de errado nisso. O problema surge quando essas dúvidas nos mantêm nessa posição de conforto, impedindo-nos de nos relacionarmos uns com os outros. Existe uma enorme pressão para correspondermos a determinado perfil na sociedade que construímos e isso alimenta dentro de nós o medo de sermos quem somos, o medo de não corresponder às expectativas dos outros, medo do que poderão pensar de nós, medo de sermos julgados e de não sermos aceites.

Eu considero que viver no medo é limitar a nossa existência, a nossa estrada de autoconhecimento e a nossa evolução enquanto consciência individual e universal. Criamos, ao longo da nossa vida, a nossa rede de suporte, a nossa tribo, composta por elementos da nossa família e/ou uns quantos amigos. Só aí nos sentimos realmente seguros para sermos quem somos sem o perigo iminente de sermos rejeitados, enganados ou magoados. Qualquer pessoa que se apresente no nosso caminho e não faça parte da nossa tribo está sujeita a uma série de etapas até conquistar a nossa confiança. Isso faz com que, inconscientemente, qualquer desconhecido seja uma ameaça para a nossa confortável posição. Embora seja um mecanismo de sobrevivência, condiciona a nossa experiência humana, na medida em que nos torna cada vez mais fechados e individualistas.

Preciosas são as redes sociais, que nos permitem unir estes dois mundos. Através delas, tanto podemos pintar uma versão idílica de nós mesmos e sermos aceites, como podemos permitir-nos ser quem realmente somos - com todas as nossas limitações e qualidades, pois os efeitos negativos que possam surgir dessa transparência são atenuados pela distância física e contornados com um simples clique. Podemos desfazer uma amizade com a mesma facilidade e rapidez com que a criámos.

Abriu-se a porta traseira da casa e por trás dela estava a companheira do amigo do meu pai, que me encarou com alguma estranheza. Revelo a minha identidade, à qual ela responde chamando pelo seu companheiro. Quando ambos se apresentam à minha frente, assim que ela lhe comunica as pistas que lhe dei, numa mistura de espanto e alegria percebem que quem os visita é o filho mais velho do seu antigo amigo da tropa.

Confesso que não reconhecia aqueles rostos que já apresentavam alguns sinais do tempo, mas rapidamente me fizeram sentir bem-vindo. Para além da visita improvável e inesperada, ficaram ambos muito surpresos por me verem ali sozinho, uma vez que me recordavam como uma criança com necessidades especiais devido à minha condição física. Uma vez feito o reconhecimento, decidi surpreender o meu pai, ligando-lhe a comunicar onde e com quem estava. Passei o telefone ao seu velho amigo e reergui a ponte entre ambos, anteriormente desfeita pela alteração de números de telefone.

No final da chamada fui convidado a entrar na sua humilde casa e sugeriram-me que ali ficasse para jantar. Nada me daria mais prazer naquele momento do que a honra de aceitar tal convite. Comuniquei que era vegetariano e tivemos um ponto de partida para uma conversa que se estendeu durante horas enquanto me preparavam amavelmente uma alternativa para mais tarde os acompanhar numa refeição, na mesma mesa que há vinte anos partilharam com a minha família.

Recordámos a nossa estadia por lá quando eu ainda era inocente e partilhámos o que havíamos feito durante estes longos anos. Falámos sobre a evolução dos tempos e das transformações que se sucederam na aldeia e, na companhia de uma garrafa de vinho tinto alentejano, o amigo do meu pai, mergulhado em nostalgia, contou-me histórias que viveu com ele nos tempos de serviço militar enquanto me revelava o seu álbum de fotografias que figuravam aqueles momentos. Ali fiquei, a conhecer um pouco mais sobre o meu pai e a razão daquela ligação existir. Foi naqueles olhos, naquele álbum e em toda aquela recepção que eu relembrei o verdadeiro significado da palavra amizade e da força que ela tem dentro de cada um de nós.

Ao aproximar-se a hora de jantar chega então o seu filho mais velho, que teve a mesma reação que os seus pais ao ver-me ali sentado à mesa. Reconheci-o de imediato, o seu rosto não sofrera grandes alterações, apenas o seu corpo apresentava sinais de maturidade. Vivia com os pais, ao contrário da sua irmã que decidira viver no centro de Beja, onde se formou e agora trabalha como fisioterapeuta, algo que me deixou curioso. Mas o que me deixou profundamente intrigado foi a escolha do seu irmão, que me confidenciou não ter pretensões de sair da aldeia. A sua humilde ambição é construir família com a sua namorada e comprar uma casa perto dos seus pais, no lugar onde cresceu e sempre viveu. Espero sempre que um jovem que resida num lugar como Trindade deseje um dia viver numa grande cidade como Lisboa, onde tudo acontece e onde as oportunidades são maiores, sobretudo a nível profissional.

Eu não tinha a noite planeada. Apenas pensava dormir no meu carro durante toda esta aventura. No entanto, após o jantar, e por cortesia do casal amigo, pernoitei naquela casa, no mesmo quarto que outrora me cederam, uma vez que a sua filha já lá não vivia. Na cama e de cabeça repousada na almofada, entro num momento introspectivo, assimilando tudo o que acabava de viver naquele dia e reconhecendo o quão importante se revelou toda aquela experiência.

Na manhã do dia seguinte e depois de uma óptima noite de sono, ao dirigir-me até à casa de banho para tomar um duche, deparei-me com a senhora da casa. Na cozinha, ela preparava um pequeno almoço para partilharmos, visto que só entraria para o serviço no final da manhã. Já na mesa, enquanto partilhávamos umas torradas de pão alentejano, conversámos mais um pouco, até que ela me questiona qual seria o meu próximo destino. Respondi-lhe que não sabia, apenas tinha uma vaga ideia. Na verdade, é esta a minha forma de levar a vida.

Nesse instante, sugeriu-me que visitasse Mértola, que não ficaria muito longe da cidade de Beja e que seria certamente do meu agrado. Depois de me dar uma breve descrição da sua passagem por lá e do que eu poderia encontrar, decidi abraçar aquela sugestão e prosseguir com a minha aventura.

Durante a minha despedida, disse-me que eu poderia ficar mais um pouco, pois ainda faltavam algumas horas para ela sair em direção ao seu local de trabalho. Mas eu tencionava aproveitar a manhã para re-visitar calmamente a aldeia, caminhando pelos meus próprios pés. Ainda não tinha tido oportunidade de fazê-lo desde que tinha lá chegado. Para além disso, ainda me aguardavam alguns quilómetros de viagem e eu pretendia explorar o local onde iria passar a noite antes que o sol se pusesse. Despedi-me educadamente com um abraço, tentando demonstrar através dele todo o meu apreço e toda a minha gratidão. Prometi lá voltar e segui caminhando na aldeia com a minha câmera, registando algumas imagens para depois partilhar com o meu pai, embora tenham sido os meus olhos a focar a maior parte do que eu observava.

A caminho do descampado atrás dos quintais, encontro um senhor vestido de uma forma um pouco intrigante, entre as suas ovelhas e frente a um dos pouco quintais que ainda restavam, afiando a sua cana-da-índia. Troquei algumas palavras com o senhor, João, que acedia com um ingénuo sorriso e uma contagiante calmaria - perfeitamente alinhada com o tempo e espaço em que nos encontrávamos. Explicou-me um pouco sobre as características do tipo de cana que trabalhava e eu, enquanto o escutava atentamente na minha ignorância, pedi-lhe autorização para fotografá-lo, na tentativa de conservar aquela imagem que me fascinava e se distanciava de tudo o que me era familiar na minha cidade.

Enquanto passeava pelo centro da aldeia, reparei que tudo se encontrava devidamente cuidado e as cores das paredes das casas sobressaíam fortemente devido ao reflexo da luz natural que ali incidia. Lembro-me que durante a caminhada e a cada esquina que virava, procurava pessoas a quem pudesse arrancar histórias e encontrar a vida que ainda existia para além dos cães que por ali passeavam livremente, sem trelas e sem vigília, das ovelhas do senhor João, dos galos que me despertaram e do verde que ali florescia. Cruzei-me com pouco mais de meia dúzia de pessoas e a maior parte eram trabalhadores de construção civil que não viviam ali e que remodelavam casas que permaneciam sem vida durante a maior parte do ano.

Os mais jovens partiram em busca de um estilo de vida que eles consideram melhor, em busca de novas oportunidades. Uns para as grandes cidades, outros para fora do país. Apenas regressam pontualmente nos seus períodos de férias, ora para fugir um pouco das vidas que escolheram e “recarregar baterias”, ora para visitar alguns membros da família - muitos dos quais já chegaram ao fim da sua jornada. Entre os idosos que gozam do último capítulo das suas vidas, muitos permanecem fechados nas suas casas, abrigados do sol e ocupando os seus dias descansando no sofá ou entretidos com a Caixa Mágica que os transporta para um outro mundo, outra realidade. Na TV, procuram abstrair-se do sentimento de solidão que carregam, fruto de um vazio interior resultante da desertificação das zonas rurais, da distância que os separa dos seus entes queridos e do sentimento de inutilidade, provocado pela chegada da reforma ou da perda gradual das suas capacidades físicas. É também na TV que julgam conhecer melhor o local para onde foram - e que vida escolheram - os seus descendentes. Na verdade, apenas vislumbram o mesmo véu de maya, o kitsch da vida ideal que, fazendo parecer medíocres as vidas que viviam, persuadiu os seus descendentes a partir em busca daquilo que todos os habitantes da Caixa já parecem ter, a Felicidade.

Não querendo sugerir que nos contentemos sempre e somente com o que temos, questiono-me: Porque será que queremos sempre mais? Nem sempre o mais significa melhor. Apesar de toda a evolução e conforto que alcançámos enquanto Humanidade (e pelos quais pagamos um preço muito elevado) parece que continuamos permanentemente insatisfeitos e inconstantes. Não estaremos nós a procurar a felicidade nas coisas erradas?

Ainda em Trindade, fotografei um cão que carregava uma herança genética de heterocromia, apresentando um belíssimo par de olhos de cor distintas, castanho e azul. Ostentava um belíssimo pêlo médio preto e branco e, apesar de se apresentar sem coleira, notava-se claramente que tinha alguém que cuidava dele. Esse alguém era um senhor de cabelo grisalho e aparentemente bem arrumado, cujo nome a minha memória apagou, que surgiu no meu caminho aquando da fotografia.

Este senhor abordou-me precisamente quando o seu cão se aproximou com um ar ternurento, aguardando alguma acção da minha parte. Ele tinha o focinho colado no chão, entre as patas dianteiras, as de trás completamente direitas, rabo empinado e cauda levantada. O seu tutor disse-me que ele queria que eu atirasse uma pedra, fazendo uma pequena demonstração. O cão correu alegremente por ter conseguido o que pretendia e curiosamente trouxe de volta a pedra colocando junto aos meus pés, ao invés dos pés de quem a atirou. Durante aproximadamente uma hora, enquanto eu atirava continuamente a pedra a uns metros de distância, iniciei uma conversa agradável com o senhor, justamente acerca das vidas passadas e actual da aldeia.

Ao som do sino da igreja, reparei que o relógio marcava o meio dia e preparei-me para me despedir de Trindade. Dou mais uma curta volta pela aldeia, desta vez de carro, e sigo em direcção à cidade de Beja para comprar alguns mantimentos e aproveitar para visitar a cidade romana, que ainda não conhecia.

Embora em Beja a minha experiência não tenha sido tão profunda, foi interessante conhecer a cidade na perspectiva de um turista, explorando sozinho e de mala às costas os recantos daquele lugar marcado pela história. Passei pelo convento de Nossa Senhora da Conceição, pela Praça da República e entrei no Castelo que alberga a maior torre de menagem do país, com cerca de quarenta metros de altura. Decidi não subir a torre, por uma questão de segurança, ficando-me pelo topo das muralhas - local que já me proporcionava uma incrível vista da cidade. Pelo que sei, não sendo um grande conhecedor da história de Portugal, é uma cidade cujos edifícios emblemáticos foram reduzidos a metade. Também percebi, através das figuras em stencil nas paredes das ruas, que foi um lugar fortemente afectado pelo regime fascista.

O que chamou a minha atenção nesta bonita cidade foi o facto de ter sido erguida no topo de uma colina, rodeada por um vasto campo que marca a fronteira entre a vida urbana e a vida rural. Uma cidade renovada e bem cuidada, com uma invejável serenidade e sem o enorme fluxo de pessoas a circular como acontece em Lisboa. Existe um belo equilíbrio entre a construção do homem e a natureza. Seria, sem dúvida, uma cidade onde não me importaria de, um dia, viver. Quem conhece bem a gastronomia portuguesa consegue perceber que não é fácil ser-se vegetariano no Alentejo. Entregue ao improviso, comi uma sopa numa taberna e rumei em direção a Mértola...

 

Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo

 

Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.

 

30
Mar20

Não Como Animais e Não Sou Vegan

 

Antes de abordar este tema quero começar por dizer que este texto tem como único propósito a partilha do meu testemunho a respeito de uma das decisões mais importantes da minha vida: a transição para uma alimentação inteiramente vegetariana - e o impacto que esta teve no meu quotidiano e transformação interior.

As razões pelas quais decidi fazê-lo serão, naturalmente, encontradas no decorrer deste meu desabafo, mas, especialmente, por acreditar que as experiências de cada um poderão de alguma forma vir a ser úteis para alguém (da mesma forma que ao longo dos anos tem sido útil para mim conhecer as histórias e as experiências das pessoas com quem partilho um lugar no mundo).

 

andrew-neel-z55CR_d0ayg-unsplash copy_resize.jpg

 

Como é costume dizer-se, “o tempo voa”, e passaram hoje dois anos desde o dia em que eliminei, por completo, qualquer ingrediente de origem animal da minha alimentação. Como tantos outros, fui impulsionado pela visualização de um documentário, e antes que alguns se apressem a colocar-me um rótulo, como eu igualmente faria há dois anos, permitam-se continuar a ler o texto e perceberão que o impacto que este teve em mim, transcendeu a barreira das modas a que estamos habituados.

Tudo começou numa serena tarde do período sabático que há dois anos decidi tirar (por razões que mais tarde falarei noutro tópico), enquanto procurava um documentário interessante para ver dentro da grelha da Netflix. Não sei que forças me impeliram a escolher algo relacionado com os efeitos negativos da indústria pecuária, mas certamente uma curiosidade já pairava sobre a minha consciência, pelo que decidi dar-lhe vazão naquele momento. Não consigo também precisar o nome do documentário em questão, nem quais os aspectos principais em que se focava (à parte das imagens de tortura comuns a todos eles) porque, ainda nessa mesma tarde, movido pelo choque e pela vontade súbita de saber mais sobre o assunto, mergulhei num serão de documentários que se estendeu até o YouTube. Noutra altura da minha vida, eu não passaria do primeiro - e quem sabe se chegaria até ao fim. Cada vez mais acredito que existem alturas certas para absorver determinadas coisas e que nada nos deve ser imposto. Falarei disto mais adiante.

Não me lembro do que almocei nesse dia, mas posso garantir-vos que o meu jantar foi inteiramente vegetariano e que todas as minhas refeições até hoje mantiveram esse requisito.

Tendo em conta a posição que actualmente tenho a respeito da exploração de todo o reino animal para satisfação das necessidades, e não necessidades, do Homem, seria ético da minha parte dizer-vos que foram as imagens de crueldade e sofrimento causado aos animais que me fizeram tomar esta decisão, literalmente, do dia para a noite. No entanto, estaria a mentir-vos se o fizesse, não querendo desvalorizar o impacto das imagens e a tristeza e sentimento de culpa que dentro de mim fizeram brotar. Foram, sim, as evidências científicas que fui descobrindo, de que afinal, toda esta máquina incrivelmente complexa que é o corpo humano, não foi desenhada para caçar, comer e digerir outras espécies sencientes e seus derivados (embora possua dentro de si, como mecanismo de sobrevivência, todas as capacidades para tal). Antes do Homem desenvolver a arte do cultivo, foi certamente por essa especial característica e habilidade física e intelectual, que faz de nós, humanos, não a espécie mais forte, mas a mais completa e resiliente, que conseguimos controlar o fogo, criar armas para inverter a nossa posição de presa perante alguns animais e resistir às mudanças climáticas (como a era do gelo que o Homem de Neandertal enfrentou).

Actualmente, com todas as condições físicas, intelectuais e tecnológicas asseguradas, já não necessitamos de nos apropriar de outras espécies para produzir bens essenciais ou, sobretudo, para nos alimentar. Esse hábito só nos tem prejudicado em larga escala, reflectindo-se não só no meio ambiente, como também na nossa saúde, através da quantidade de doenças crónicas que têm vindo a crescer em pleno século XXI.

Quanto mais informação eu acumulava, filtrava e absorvia, maior era a fome de conhecimento; e quanto mais a saciava, maior era a revolta que começava a crescer dentro de mim. Comecei a sentir que me tinham vendido uma mentira a vida toda e que muitos dos nossos hábitos do quotidiano são afinal sustentados por falsas crenças. Crescendo a agir sob o "efeito manada", sem questionar, por exemplo, por que raio comemos cereais com leite ao pequeno-almoço, que é nada mais nada menos do que uma combinação de um produto altamente processado, rico em açúcares de absorção rápida, gorduras, calorias e diversos aditivos, com uma secreção nutritiva de um mamífero de outra espécie animal, que tem na sua composição todos os elementos necessários para nutrir as suas crias enquanto estas não conseguem digerir alimentos sólidos nem alimentar-se de forma autónoma. Já para não falar de todo o processo da indústria do leite, desde as condições a que os animais são expostos, passando pela manipulação cruel e abusiva a que estão sujeitos, até à bonita e inocente embalagem que alberga o homogéneo e sedutor liquido branco que tanto e tantos nos habituámos a consumir e que, durante anos, foi sinónimo de saúde e bem-estar. Como dizia Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazi, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

Isto é apenas a ponta do icebergue. Mas não pretendo transformar isto num artigo científico, alargando-o para o consumo de outros derivados de animais ou de partes do seu corpo, usei este pequeno exemplo para ilustrar que este tipo de consumo já não é uma questão de sobrevivência (pelo menos para o mundo ocidental), mas sim uma prática culturalmente entranhada nas nossas sociedades e que tem sido perpetuada durante gerações.

Apesar de ter passado o resto da semana a ver vídeos de palestras e a ler artigos científicos e testemunhos pessoais, tudo aquilo a que fui exposto nesse dia, e no período sabático em que me encontrava, foi mais que suficiente para não conseguir olhar para a comida com os mesmos olhos. Não recomendo a ninguém fazê-lo da forma que fiz, porque embora o nosso corpo funcione do mesmo modo, o nosso organismo não absorve nem reage a determinados alimentos e mudanças de hábitos de forma igual. Tudo o que fiz foi aprender a escutar o meu corpo e a forma como ele ia reagindo de dia para dia a cada refeição, uma habilidade por muitos esquecida, talvez por vivermos num mundo cada vez mais acelerado e industrializado, onde o conhecimento tem aumentado em proporção à sabedoria que se tem perdido.

Embora pareça ter sido insensato e irresponsável da minha parte, a verdade é que fiz os possíveis para que esta transição não se revelasse um problema na minha saúde. Fiz exames de rotina nessa altura e também um ano depois, para poder comparar e precaver-me, embora em momento algum tenha sentido que a minha saúde estivesse em risco, pois acreditei, desde o primeiro dia, que o que estava a fazer era o mais correcto a nível biológico.

Apesar de naquela altura, devido à inexperiência, as minhas refeições não serem tão variadas como as que actualmente preparo, tinha um certo cuidado para não cair no típico arroz com feijão, nos tempos em que a preguiça tentava levar a melhor. Muitos dos erros comuns de quem se inicia nesta aventura é acabar por se render à tentação dessa combinação mais vezes do que é o suposto, ou à de uma simples salada que, apesar do seu valor nutritivo, apresenta um défice de muitos outros nutrientes de que o organismo tanto necessita, trazendo a longo prazo sérios problemas para a saúde.

De imediato, deixei de “sofrer” de prisão de ventre, algo que era tão natural para mim desde tenra idade. Senti que o meu aparelho digestivo funcionava na sua plenitude, proporcionando-me uma maior sensação de leveza e energia após cada refeição.

Adoraria partilhar aqui uma série de melhorias no meu organismo mas, no meu caso particular, esta foi a mais impactante e a que a minha memória me permite retratar mais fielmente, para além dos resultados animadores dos exames de rotina que havia feito um ano depois, em comparação ao anterior, mesmo que no primeiro não existisse nada de preocupante. Isto foi suficiente para provar a mim mesmo que tinha tomado a decisão certa e que me encontrava num bom caminho.

Felizmente, as vantagens que esta decisão trouxe à minha vida foram para além dos resultados no meu corpo. Aprender a cozinhar foi uma delas, pois até à data, as visitas de médico à cozinha eram alternadas entre o frigorífico e o microondas, excepto raras ocasiões em que a minha mãe não podia dar conta das refeições, e lá teria eu de dar atenção ao fogão para preparar o clássico prato da casa: esparguete com bife de peru. Era o máximo que a minha preguiça e paixão pela culinária permitiam, sem esquecer os hambúrgueres e ovos estrelados no banco de suplentes, caso o peru estivesse lesionado.

Sim, nesta altura era o quase-trintão que retorna à casa de família, história que muitos conhecem, embora neste caso fosse devido a razões muito além das económicas.

Uma vez que propor algum vegetarianismo à minha mãe seria como sugerir-lhe que aprendesse mandarim e mudar a ementa aos meus irmãos seria como, na minha infância, obrigarem-me a comer ervilhas, tive de accionar mecanismos de sobrevivência... e bem-ditos sejam os motores de busca na internet, que foram o meu livro de receitas quando, de repente, me encontrei a navegar por mares desconhecidos.

Em pouco tempo acabei por ganhar gosto em materializar as receitas que encontrava, desfrutando daquilo que gostava de considerar “obras de arte” comestíveis. Isto porque, nesta fase da minha relação com o fogão, tinha de encontrar formas de manter a chama acesa, caso contrário, cozinhar tornar-se-ia um martírio.

No final de cada prato, e antes da degustação, fazia questão de fotografá-lo. Naquela altura já tinha cortado relações com o Instagram, mas as fotografias serviram para partilhar, pessoalmente, entre o meu círculo, e para reunir uma espécie de portfólio, a que eu pudesse recorrer na falta de ideias para cozinhar. Hoje em dia não mantenho essa prática, excepto quando me pedem, uma vez que esta relação se encontra bem consolidada e evoluiu para uma fase mais profunda. Apercebi-me de que o mais importante na vida é a viagem e não o destino. O processo e não o resultado final. Cozinhar não foge a essa premissa. Digamos que, para mim, funciona como uma espécie de meditação, leva-me a focar a minha atenção no que estou a fazer e a atenuar o turbilhão de pensamentos que tendem constantemente a invadir a minha mente. É uma forma de me sentir presente.

Outro aspecto positivo foi o facto de tudo isto, de forma natural, ter-me levado, gradualmente, a fazer escolhas conscientes na altura de comprar, a fim de reduzir a pegada ecológica e reforçar o meu sistema imunitário, levando-me a aprender a analisar os rótulos dos produtos, a cortar com os açúcares refinados, a reduzir drasticamente o consumo de produtos processados, a adquirir leguminosas e sementes a granel e, mais recentemente, levando-me a frequentar mercados e a optar por produtos locais, sazonais e biológicos.

Como resultado disso, percebi que uma alimentação vegetariana nem sempre é sinónimo de uma alimentação saudável, pois, até então, a soja e os seus derivados eram quase sempre titulares na minha equipa. A maior parte dos meus pratos (à excepção de algumas leguminosas e poucos legumes) tinham como base soja, tofu ou seitan, como acompanhamento arroz ou massa, e, às vezes, uma salada simples de alface e tomate. Curiosamente a soja e as massas são, hoje, elementos que raramente saem do banco, e os legumes e frutas passaram a representar cerca de oitenta por cento da minha tática.

Para além da minha saúde, a minha carteira beneficiou um pouco com esta evolução, porque quando se fala sobre a dieta vegetariana ser muito dispendiosa para determinadas pessoas, sei, por conhecimento empírico, que isso não corresponde inteiramente à verdade. Se mantivermos os mesmos hábitos alimentares e somente tentarmos encontrar substitutos (algo que é muito natural acontecer no período inicial de transição), aí sim, vamo-nos deparar com uma diferença de preços significativa. Estou a referir-me a versões vegetarianas de hambúrgueres, nuggets, rissóis, almôndegas, queijos, fiambres, bolos, biscoitos ou leites. Quase tudo hábitos alimentares adquiridos pós-industrialização, essa que nos toldou a percepção que temos dos ingredientes (e sua proveniência que compõem um prato). Ou seja, são alimentos perfeitamente dispensáveis se mudarmos o nosso mindset.

Entendo que nos dias de hoje, tal como temos vindo a perder a capacidade de escutar o nosso corpo, é também complicado para muitos, e sobretudo para os que têm pessoas a seu encargo, encontrar tempo e disposição para questionar e implementar este tipo de mudanças no seu quotidiano. A maior parte de nós vive em "piloto automático", "multi-atarefado" e constantemente exposto a milhares de informações a cada hora que passa. Não obstante, tem de existir por parte de cada um, à medida que enxerga esta realidade, vontade e determinação para romper com este ciclo doentio em que temos vivido no mundo moderno.

Outro aspecto positivo foi a expansão da empatia pelos meus semelhantes para todo o reino animal. Creio que não existe ninguém que não goste de animais, nem que seja apenas por uma espécie em particular ou pela admiração da sua beleza estética. Já o respeito e empatia por todos eles, é outra conversa e é algo de que eu próprio carecia em certa medida.

Nesta fase transformadora em que me sentia um pouco só, decidi explorar essa empatia com a adopção do Kovu, o meu companheiro de quatro patas que tanta dor de cabeça me deu, mas que também muito me ensinou. Quem diria que um dia eu iria aprender algo com um cão, animal do qual sempre gostei, mas nunca o suficiente para permitir que me desse banhos de língua e me cobrisse o chão de pêlo, tal como o Kovu faz, com tamanha mestria.

Na verdade, já tinha esta intenção por conta da influência que o Tchuy teve em mim. Falo do cão de um dos meus melhores amigos, pois foi através da convivência com ele, e da sua história, que cresceu em mim a empatia pelos cães. No entanto, ao mesmo tempo que sentia ser a altura ideal para adoptar um cão, dei por mim caído numa contradição. Deixei de compactuar com a indústria da exploração animal através da alimentação e, gradualmente, noutros aspectos do meu dia-a-dia, para depois voltar a dar um passo atrás com a sua adopção? Como podem imaginar, falo da questão das rações. Dei por mim inserido num ciclo de egoísmo, no qual outros animais são abatidos para que o “meu” se possa alimentar de forma cómoda e nutricionalmente completa.

Embora eu tenha contribuído para que menos um rafeiro fosse parar às ruas ou a um canil municipal, não deixa de existir uma certa dose de egoísmo ao compactuar com a colectiva distinção de Seres, domesticando e alimentando artificialmente uns em detrimento de outros. No entanto, e a fim de atenuar um pouco esse paradoxo, fiz uma pesquisa intensiva sobre alimentação canina e decidi alimentar o Kovu com uma marca de rações italiana que não testa os seus produtos em animais. Sim, porque este ciclo injusto não se limita à matança. Alguém tem de provar antes de ir para o mercado, e esta face da moeda também não é nada agradável de se ver, para não falar dos ingredientes que compõe a maior parte das rações que estão no mercado, inclusive em versões premium.

Fiz esta escolha sabendo que no futuro viria a alimentá-lo com ração vegetariana, porque antes de o acolher estudei muito essa possibilidade e entendi que os cães podem ser considerados “omnívoros”. Não no sentido literal da palavra, mas no sentido em que demonstram maior flexibilidade no que toca à alimentação, característica herdada pelos lobos que se acostumaram à convivência com os hábitos alimentares humanos. No entanto, para que tal se verifique, o alimento que lhes é oferecido deve ser nutricionalmente equilibrado para atender às suas necessidades fisiológicas. Estamos a falar de conter todos os aminoácidos essenciais que não são produzidos pelo seu organismo e de todos os lípidos, vitaminas e minerais necessários para a manutenção da sua boa saúde. 

A ideia seria mudar a alimentação do Kovu depois de ele completar um ano de vida, fortalecendo assim o seu sistema imunitário com a alimentação convencional, para não negligenciar o seu crescimento. Mas decidi adiar por mais um ano e em breve farei essa transição de forma mais atenta.

Esta questão levanta muita controvérsia e consigo imaginar quais as objecções que muitos poderão levantar, como por exemplo, sobre ser ou não ser contranatura alimentar um cão com ração vegetariana. Mas visto sob esse prisma, podemos reparar que nada é natural a partir do momento em que alimentamos os cães com rações e os subjugamos a regras e condições criadas por nós. Estas práticas não lhes são naturais, apenas surgem da domesticação dos animais pelo Homem moderno (motivos que me levam a considerar o Kovu o último companheiro de quatro patas que voluntariamente terei comigo). Nesta altura, mais importante do que discutir o que é, ou não, contra a sua natureza, é questionar como e quais as melhores formas de os tutores de animais domesticados garantirem de forma consciente a sua estimação, segurança, saúde e bem-estar na medida do que nos é possível fazer.

Não pretendo desviar-me muito mais do assunto, até porque para aprofundar esta matéria já existem muitos estudos e debates onde ambos os lados carregam argumentos bastante válidos. Tal como na questão da alimentação para humanos, eu jogo com a minha intuição e com a informação que me parece fazer mais sentido, testando e observando atentamente os seus efeitos, com o acompanhamento de um profissional de saúde, neste caso um veterinário.

Como podem imaginar, nem tudo foi um mar de rosas e não seria justo se terminasse este testemunho por aqui.

Vou começar pelas questões menores, mas que também tiveram o seu peso. Estou a falar, por exemplo, de que a partir do primeiro dia, e durante bons meses (se não um ano), sentia muitas vezes uma fome desgraçada a todo o instante. Isto devia-se ao simples facto de os alimentos de origem vegetal serem de digestão e absorção mais rápida. O meu organismo não estava habituado, pelo que levou algum tempo a adaptar-se a esta mudança, depois de vinte e oito anos acostumado a um certo padrão.

Devo também confessar que, tal como muitos poderão compreender, satisfazer a minha velha compulsão por doces foi muito complicado. Noventa por cento do que encontramos nas montras das pastelarias e prateleiras dos supermercados está contaminado com derivados de animais, embora no segundo caso já existam mais alternativas, mas que actualmente não vão ao encontro das minhas opções alimentares, não negando a possibilidade de pontualmente experimentar uma coisa ou outra.

Uma das dificuldades que mais enfrentei, como já mencionei anteriormente, foi o facto de me sentir sozinho nesta luta e ver-me passar por tamanha transformação e despertar de consciência enquanto tudo à minha volta parecia estático. Como um jovem de classe média baixa que praticamente viveu toda a sua vida num bairro social (por mais que o meu grande leque de “amigos” transcendesse essa barreira), jamais imaginei passar por este processo. Este tipo de questionamento, e de causas, nada tinha que ver comigo e, provavelmente, eu seria um idiota que se iria rir e banalizar quem estivesse a passar pelo mesmo. Tão verdade, que a minha mudança gerou alguma estranheza entre os meus amigos e familiares.

Senti muito a falta de ter com quem partilhar e trocar ideias. Alguém que estivesse no mesmo barco que eu, alguém que pudesse remar por mim nas alturas mais críticas e vice-versa. Alguém que já tivesse passado pelo mesmo e pudesse partilhar comigo o seu testemunho e algumas dicas numa fase inicial. Se ainda tivesse conta no Facebook talvez descobrisse, entre os meus três mil e tal “amigos”, alguém que pudesse preencher essa lacuna, mas junto com isso viriam outras coisas menos boas e eu não estava disposto a retroceder numa outra decisão que tomei fazendo da solidão um motivo para voltar às redes sociais.

Por último, e para finalizar este testemunho que já se faz longo devido à minha inexperiência (talvez devesse escrever um livro e não um blog), gostaria de abordar uma outra questão muito importante: a aceitação e o respeito pelas escolhas dos outros.

Como referi anteriormente, esta transformação trouxe-me muita revolta pelas respostas que fui encontrando para as minhas questões. Estando sozinho neste processo, procurava trazer luz para dentro do meu círculo mais próximo, cometendo o erro de achar que, pelo facto de tudo isto se tornar tão claro e lógico para mim, o mesmo aconteceria com os meus, quando confrontados com o mesmo conhecimento.

Os primeiros debates tiveram lugar à mesa de jantar, entre família, por minha iniciativa, provocando reflexão através de questões que eu lançava. Depois continuaram entre amigos e outros familiares quando, à medida que me convidavam para eventos, se deparavam com esta minha nova “condição”. Nessas ocasiões o debate partia deles, questionando os meus motivos, e aqui as opiniões eram divididas. Todos respeitavam a minha escolha, mas à esquerda tinha os que a admiravam e à direita os que torciam o nariz, mostrando-se inclinados para o debate, contra-argumentando as minhas razões. Não posso negar que, nesta fase em que a panóplia de informações era fresca na minha memória, ansiava por essa oportunidade de descarregar todo esse conhecimento que era demais para carregar sozinho e, consequentemente, tentar desconstruir as crenças de quem argumentava comigo, herdadas por anteriores gerações, e que também foram minhas durante anos, fruto da ausência de questionamento e reflexão profunda. É compreensível, pois começa desde cedo o condicionamento e a implantação de valores e de crenças nas escolas onde somos educados, ou melhor, instrumentalizados, com o sistema tradicional de ensino que não nos ensina como pensar, mas o que pensar. O mesmo se pode dizer da educação que alguns de nós tiveram em casa, por pais igualmente condicionados que seguem, inconscientemente, o mesmo código de conduta.

Aquilo que deveria, para mim, ter como objectivo a partilha de conhecimento, deixava de ter essa função à medida que me ofereciam resistência ao que eu argumentava, dando lugar a uma luta de egos entre o meu conhecimento e o dos outros, acabando eu próprio por entrar nessa disputa inconscientemente e chegando, inclusive, a elevar o tom da minha voz na impotência de conseguir elucidar o outro, ou melhor, de conseguir sequer ser ouvido. Já para não falar das piadas de que fui alvo, que alimentavam ainda mais essa sensação (e eu até me considero uma pessoa com bastante sentido de humor e o primeiro a rir de mim próprio). O que me incomodava não eram, de todo, as piadas, mas sim a pobreza da maior parte delas, e o facto de serem fruto de uma clara ignorância a respeito da temática em questão.

Com o tempo fui-me apercebendo de que estas discussões apenas me criavam alguma ansiedade e que raríssimas vezes tinham algum efeito positivo. Na verdade, a frustração vinha do facto de eu criar expectativas, ao achar que os outros à minha volta estariam dispostos a ouvir-me, e que conseguiria provocar alguma reflexão neles e, quiçá, uma mudança nos seus hábitos e pensamentos.

No seguimento de tudo isto, vem a conclusão a que cheguei e que já referi anteriormente: Cada um de nós tem um estágio ideal na sua vida para questionar e absorver determinados assuntos. Períodos em que atingimos diferentes estados de pensamento e de consciência, impulsionados por determinados acontecimentos e vivências, quer pelo tempo que vão somando, quer pelo confronto directo com experiências traumáticas.

Entendi também que o ser humano tende a apegar-se ao seu conhecimento e conjunto de crenças como parte da sua identidade, e, quanto maior for a sua identificação com o ego, maior será a sua resistência a ideias contrárias àquelas que, voluntária ou involuntariamente, adquiriu.

Assim sendo, qualquer tentativa de mudar o próximo ou de sobrepor a nossa verdade à do outro é inútil e até contraproducente. Quanto mais o tom de voz se eleva, maior é o efeito contrário ao pretendido, pois o ser humano receberá isso como um atentado à sua persona, e, ao sentir-se atacado, activa automaticamente o seu mecanismo de defesa, negligenciando, nele próprio, qualquer espaço para ouvir e estando apenas interessado em manter de pé as fronteiras da sua “identidade”.

Uma vez compreendido isto, deixei de ter a pretensão de querer “mudar o mundo”. Na verdade, ele já está em constante mutação, resta-me apenas escolher como participar nessa mudança, trilhando um caminho escolhido por mim, em sintonia com o meu estado de consciência e com as minhas convicções, ainda que ao virar na curva me espere um caminho solitário. Entenda-se que solitude não é sinónimo de solidão e essa é a fase da viagem em que me encontro neste momento, a descoberta e o vislumbre gradual dessa verdade.

Esta minha nova conduta permitiu que a humildade não perdesse lugar para a arrogância, qualidade destrutiva muito comum entre os que seguram bandeiras e tencionam mudar o mundo. A arrogância cresce silenciosamente, e quando floresce, transforma-se em ódio.

O meu cão não é o meu melhor amigo, nem gosto mais de animais do que de pessoas. Gosto da natureza como um todo, mas em tempos de crise salvarei primeiro o meu semelhante. Assim como em tempos de agonia, se nada tiver para meter à boca, não serei vegetariano nem vegan, serei um homem com fome e entrarei em modo de sobrevivência animal, comendo o que tiver ao meu alcance. Não faço da minha dieta e dos meus princípios uma religião ou um clube. Não é um regime porque não faço restrições alimentares, mas sim novas escolhas de acordo com a minha consciência. Não é uma colectividade associativa onde dou vazão à necessidade que o Homem tem de pertencer a grupos para se sentir seguro (o que se compreendia nos tempos dos nossos ancestrais que viviam em ambientes hostis, como a natureza selvagem). Também não é uma questão de ego e de querer alimentar a “fome de reconhecimento" (que Dale Carnegie tão bem descreve como necessidade primordial do Homem) ao pertencer a um grupo minoritário que contrarie o pensamento corrente.

Enquanto Ser, não sou o país em que nasço, a tribo a que pertenço, aquilo que como, a roupa que visto, as coisas que compro e os bens que possuo. Sou a minha consciência, as minhas escolhas e as minhas acções. Sou apenas mais um entre tantos nesta família humana, e para não compactuar com a construção de muros que nos tende a separar conforme a história nos conta, eu escolho não segurar bandeira nenhuma, só assim creio poder contribuir para a construção de pontes entre nós/entre todos.

A partir do momento em que isto se tornou claro para mim e passou a fazer parte do meu modo de estar, comecei a notar pequenas mudanças a acontecer dentro de mim e também à minha volta. Se formos fiéis a nós próprios, sem medo de ser quem somos, sem nos deixarmos corromper pelo "efeito manada" e trabalharmos a nossa consciência, essa energia emana para fora e há sempre alguém que nos observa e que, de alguma forma, poderá sentir-se contagiado sem que tenhamos qualquer pretensão de influenciar ou mudar o outro. Da mesma forma acontece connosco.

Segundo Sócrates, "aquele que mover o mundo, primeiro se moverá”.

 

Foto de Andrew Neel em Unsplash

 

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.