Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

15
Set23

Uma Aventura na "Suíça" Brasileira

Hoje acordei a dar-me conta de como o tempo tem passado cada vez mais depressa. Faz neste dia precisamente um ano desde que embarquei na maior, e mais desafiante, aventura da minha vida — uma temporada de três meses no outro lado do Atlântico.

 

IMG_4557-2.jpg

 

Várias razões me detinham preso a um lugar que não me permitia a ousadia de arriscar ir, alguns medos; uma casa alugada; um trabalho; pouco dinheiro; restrições inerentes à pandemia; entre outras. Além disso, havia também o facto de só ter viajado para fora de Portugal apenas uma vez, há 23 anos atrás, para um fim-de-semana na Disneyland Paris. Desta vez, seria para embarcar sozinho num avião, durante uma viagem de 10 horas, para um lugar a 8 mil km de casa, onde iria permanecer por três meses na casa de alguém que me aguardava do outro lado, e que eu havia conhecido em Portugal apenas alguns meses antes.

Às vezes, esqueço-me de que tenho uma deficiência motora, de tal forma que me soa até estranho escrever sobre isso, e é nestas alturas que dou de caras com esse facto e que sou obrigado a reflectir sobre até onde pode ir a minha ousadia. Eu só tinha duas opções, ou me mantinha preso por segurança, ou arriscava por liberdade. Escolhi a liberdade e o risco, é claro, por intuição, por amor, e sobretudo para voltar a sentir-me vivo. Há coisas que acontecem no nosso caminho, que são oportunidades preciosas para nos colocar-mos em posições onde nunca estivemos, e assim, conhecer um pouco mais sobre nós.

Ao longo desses meses tive oportunidade de visitar as seguintes cidades: São Paulo; Ubatuba; Holambra; Rio de Janeiro; Salvador; Mogi Guaçu; Jacareí; São José dos Campos; São Bento de Sapucaí; Santo António do Pinhal. No entanto, há uma cidade em especial que guardo no meu coração, pouco conhecida pelos europeus mas muito requisitada pelos Brasileiros no inverno. Estou a falar de Campos do Jordão, a cidade mais alta do Brasil, a 1628 metros de altitude na Serra da Mantiqueira.

Campos do Jordão pode orgulhar-se de possuir um dos melhores climas do mundo. Passou de uma cidade sanatório, destinada à cura de tuberculose, para uma das maiores referências do turismo no Brasil. No inverno, a sua época alta, o centro turístico da cidade, Capivari, vira uma autêntica vila de natal com toda a sua iluminação. Devido à presença de pequenas colónias europeias no passado, as construções da cidade tem um estilo semelhante às das regiões montanhosas no norte da Europa. As casas possuem telhados com geometria triangular ou cónica, e exibem madeira ou tijolos no exterior, tudo pensado e adaptado ao clima das montanhas, não é em vão que lhe chamam a “Suíça Brasileira” — o lugar que os Brasileiros escolhem para fugir do calor e experienciar um inverno “europeu”. 

Apesar do frio de rachar que enfrentei enquanto lá vivi, coisa que não imaginaria passar, mesmo tendo sido avisado, o calor com que me acolheram os habitantes de Campos fez com que se tornasse confortável toda a minha estadia na cidade. Fui aquecido pela simpatia dos comerciantes e moradores, pelo amor da minha hospedeira (hoje companheira de vida), pelo vinho quente, pelos pães de queijo, pelas tapiocas, pela sopa de fubá da Valéria, pelo pastelão do Maluf, e pelo pastel do tio Jorge. 

Para aquecer o estomâgo, tive também a sorte de experimentar um dos cafés mais exóticos do mundo, e também mais caros, feitos a partir de grãos de café excretados por uma ave da mata Atlântica chamada Jacu. A sua fisionomia parece o resultado do cruzamento de um pavão com uma galinha, é um animal inteligente que se alimenta dos melhores frutos de café, e uma vez que não mastigam, acabam por reter toda a polpa e eliminar pelas fezes as sementes inteiras, adicionando-lhe um sabor diferenciado por causa da decorrência da acidez e da acção das enzimas presentes no seu organismo.

Como maior parte das cidades turísticas, nem tudo cabe numa fotografia de postal. Na periferia dos centros turísticos existem outras realidades, e Campos não foge à regra. É na periferia que vivem os trabalhadores do centro e a dicotomia existente na cidade é gritante e a poucos metros de distância. Num lado as casas são estilo “Suíça”, no outro são estilo favelas do Rio; num lado os condutores param na passadeira, no outro é o salve-se quem puder; num lado votam Bolsonaro, no outro votam Lula. 

Por falar em política, esta minha temporada decorreu na altura perfeita para conhecer o Brasil a um outro nível. Eu presenciei os dois maiores acontecimentos deste país, as eleições presidenciais e o Mundial de futebol. Nas eleições vi um Brasil incrivelmente polarizado, a população completamente dividida e um fanatismo tal, só visto no futebol — não há muitas diferenças entre as campanhas eleitorais e o Brasileirão. Durante as campanhas, era fácil identificar os apoiantes de Bolsonaro, estes exibiam nos seus veículos pessoais a bandeira nacional, ou vestiam a camisola da selecção de futebol. Foi preciso a chegada da Copa para quebrar por momentos essa divisão e para que todos voltassem a usar a mesma camisa, pois acima de política, futebol no Brasil é religião.

Embora estivesse a viver uma nova experiência e a conhecer outros cantos do mundo, nem todos os dias foram de euforia e entusiasmo. Foi também nesta temporada, logo no primeiro mês, que eu vivi uma catarse muito forte. Estava a hospedado numa casa desconhecida, num país diferente, com alguém que pouco conhecia, e a 8 mil km de tudo o que me era familiar. Havia dias em que me sentia turista, outros dias em que me sentia emigrante, era uma sensação muito estranha, afinal de contas nem sempre estive a passear muitas foram as manhãs que passei sozinho em casa a ver a chuva cair. 

A casa onde vivi ficava no cimo da serra, e a única forma de sair para a cidade era através de um autocarro cuja paragem se fazia distante e por um caminho tortuoso para alguém com a minha condição. Tantas foram as vezes que eu desejei ter comigo o meu carro que tanta independência me promove. Estar dependente de alguém foi uma experiência que mexeu muito comigo, e para piorar, eu tinha deixado Portugal numa fase muito conturbada da minha vida. Todo este conjunto de factores levantou muitas questões e me esbarrou contra algumas sombras — que sorte que tive nesses momentos, ao ouvir a companhia dos pássaros na varanda, enquanto contemplava a melhor paisagem que alguma vez tive na frente dos meus olhos.

A beleza da serra da Mantiqueira, um dos maiores patrimónios naturais do Brasil, tem mais de 500 km de extensão que atravessam três estados, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Na parte que podemos observar de Campos de Jordão, está uma abundante Mata de Araucárias. A árvore que dá nome a esta mata, também conhecida por Pinheiro-do-paraná, possui uma beleza sem igual. O seu tronco rectilíneo pode chegar a 50 metros de altura, e a sua copa vai mudando com o crescimento, começando em forma de cone e acabando em forma de taça — na idade adulta parece um autêntico candelabro. As árvores fêmeas dão origem a pinhas com o tamanho da minha cabeça, carregam lá dentro uns pinhões com o tamanho do meu polegar, altamente nutritivos. Demoram entre 20 a 40 anos para se reproduzirem e podem viver muito mais de quatro séculos. 

Já parece claro que fiquei apaixonado pelo encanto desta árvore, e como não poderia trazer nenhuma debaixo de braço, decidi tatuar uma em cima dele, eternizando assim esta minha jornada — a imagem da araucária será sempre o portal de regresso a Campos do Jordão.

(Ver fotos no meu Instagram)

23
Jan23

O Berro de Quincas


IMG_0461.jpg

 

Hoje vou falar-vos sobre o meu encontro com alguém que teve duas vidas e três mortes. Não me refiro a nenhuma experiência espiritual esotérica, mas ao conto de Jorge Amado, publicado pela primeira vez em 1959, numa revista carioca chamada Senhor. Mais tarde, foi editado em livro e tornou-se uma das obras mais famosas do escritor.

A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água, embora seja uma pequena história, escrita numa linguagem simples, o que a torna alcançável a todo o tipo de público, trás consigo mensagens um tanto profundas. Se julgasse-mos o livro pelo título, levaria-nos erroneamente a pensar de que se trata de um drama, mas na verdade, estamos perante uma sátira social que mistura o real e o absurdo de uma forma um tanto cómica.

Neste conto, Jorge Amado, constrói uma narrativa em torno da dualidade da vida de um homem que deixou de parecer Joaquim, homem domesticado pelas convenções sociais, funcionário público, e aparentemente bem sucedido aos olhos da sua família e dos seus vizinhos; para ser Quincas, o homem que um dia largou tudo, entrou num bar que habitualmente frequentava, entornou um copo de água achando que era cachaça, e deu o grito da sua libertação — o grito que o tornou no boémio mais famoso das ruas de Salvador, que fazia troça dos valores burgueses, dos deveres cívicos, e da hipocrisia da sociedade.

Ler este conto, foi como regressar ao passado e resgatar algumas memórias, um passado não tão longínquo onde um dia também fui Joaquim, e um passado mais recente onde eu já era Quincas. 

Já fui o jovem que perseguia a ideia de “ter sucesso”, e que durante muitos anos carregou o fardo de tentar “ser alguém”, encaixando-se lentamente nos moldes da sociedade perfeita, para ser o jovem que descobriu que já nascera sendo alguém, e que o sabor do sucesso que antes perseguia e começara a sentir, era na verdade o sabor a corante. 

Quanto ao passado recente, refiro-me à primeira viagem internacional que fiz sozinho, há cerca de um mês, para Salvador da Bahia justamente, cidade pela qual me apaixonei de imediato, pelo seu lado pitoresco e por todo o património que carrega, e que ainda hoje me invade alguns sonhos. Nunca imaginei que um dia estaria no Largo Quincas Berros D’agua, nome do personagem principal de um livro que constava há muito na minha lista de livros a ler.

Ao entrarmos no mundo de Quincas, somos automaticamente transportados para Salvador, inundados pela cultura baiana, acordados com uma chapada de realidade, e intrigados com uma pitada de fantasia.

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.