Mil Quilómetros de Autodescoberta (2/3)
Foi uma curta viagem de quarenta minutos em estrada nacional, com uma vista bem mais agradável e próxima da natureza do que teria sido pela auto-estrada. Raramente me cruzei com outros carros e, sendo uma estrada estreita, senti-me mais perto dos campos e quintas envolventes, muitas vezes com árvores muito próximas que criavam uma sombra agradável, ainda que intermitente. O calor ainda era intenso nos últimos dias de Setembro.
Apesar de ter desfrutado da viagem e da minha própria companhia, houve uma altura em que algumas questões que tinham surgido no dia anterior, quando bati à porta do casal amigo de Trindade, voltaram a aparecer. Talvez porque agora seguia inteiramente para o desconhecido. Quando deixei a cidade de Beja, deixei de ter um plano. O facto de não ir ao encontro de alguém familiar, de não conhecer o local para onde ia e de não saber se encontraria um sítio para estacionar e pernoitar, provocava-me alguma insegurança.
Tudo isto fez-me novamente questionar o sentido do que estava a fazer. Eu estava sozinho, sem conta em qualquer rede social e muito menos internet para partilhar fotografias que validassem esta minha experiência, ou uma mensagem que contornasse a ausência de uma companhia. É aqui que surge uma questão que coloquei a mim próprio e que hoje coloco a quem se atravessa no meu caminho, com o objectivo de provocar reflexão. Se estivesses sozinho no mundo, sem ninguém a observar-te, a vida que escolheste continuaria a fazer-te sentido?
Foi à boleia desta reflexão que segui viagem, enquanto apreciava a vista em cada quilómetro. Se não estivermos bem connosco e não soubermos desfrutar da nossa própria companhia, não conseguiremos relacionar-nos com o que nos rodeia de forma saudável. Usaremos pessoas e coisas sempre de uma forma egoísta, com o objectivo de satisfazer desejos, preencher vazios e suprir carências e necessidades. Este tipo de relação com o mundo externo faz com que nos apeguemos e tentemos possuir tudo aquilo que nos faça felizes.
Mas o que experienciamos, na verdade, é o prazer e não a felicidade. Segundo um provérbio Hindu, “o prazer é a sombra da felicidade”. Buscar o prazer no mundo externo é uma coisa natural ao ser humano, somos feitos de matéria mas é também a experiência sensorial que alimenta a nossa alma. No entanto, é importante que exista um equilíbrio nesta busca. Um equilíbrio que nos impeça de cair num desejo incontrolável, que nos salve da obsessão, da dependência, da morte da liberdade interior, do momento em que a busca, o desejo, se revela, afinal, um obstáculo à Felicidade.
A Felicidade é um estado permanente que deve ser procurado no mundo interno. Se a perseguirmos na dimensão física, estaremos constantemente inconstantes e insatisfeitos. No mundo externo tudo é efémero e impermanente. A um nível mais profundo acabaremos por entender que nada está realmente sob o nosso controlo a não ser a forma como nos movemos. Só é possível perceber isto quando olhamos para dentro e experienciamos a verdadeira consciência. Uma vez tocada essa consciência, acontece um processo de descoberta. A mudança será o resultado natural dessa descoberta. Pois ao contrário do mundo externo, a consciência é algo imutável e é nela que reside o nosso verdadeiro Ser. Nada melhor que a seguinte frase do romancista francês Jules Barbey d'Aurevilly para concluir esta minha reflexão: “O prazer é a felicidade dos loucos, enquanto a felicidade é o prazer dos sábios.”
Chegando a Mértola, e antes que o sol se recolhesse, fiz um reconhecimento desta vila museu com o objectivo de perceber que locais teria para visitar no dia seguinte. Para além disso, tinha o desafio de procurar um sítio apropriado para estacionar o carro e nele pernoitar.
Encontrei um lugar interessante junto ao rio e a uns metros de um hotel, imaginando a belíssima vista que teria ao acordar com os raios solares trespassando os vidros do meu carro. Igualmente atraente era a ideia de estar rodeado de árvores e não vizinhos. Mas ocorreu-me que poderia ter o sono interrompido pela presença das autoridades locais por estar estacionado no meio de nenhures, pelo que optei por ficar num parque destinado a auto-caravanas, a poucos metros dali, preservando a experiência que imaginei - substituindo as árvores por auto-caravanas.
Entretanto fez-se noite e fez-se fome. Após umas voltas pela vila, a minha intuição dizia-me que nenhum restaurante naquele lugar me iria providenciar uma refeição vegetariana. Escolhi aleatoriamente um deles e improvisei, pedindo uma sopa de legumes, um prato de feijão e arroz acompanhado com salada e umas fatias de pão alentejano. De volta ao parque de auto-caravanas, tento preparar a melhor cama possível recolhendo os bancos traseiros do carro e fazendo duas camadas de sacos-cama para ter algum conforto. Não foi, de todo, o melhor lugar onde alguma vez dormi. As duas camadas revelaram-se insuficientes para o conforto da minha (unicamente possível) posição fetal.
Acordei como previa, numa luminosa manhã, e desloquei-me até ao lugar em que tencionava repousar na noite anterior para escutar o som da natureza, sem a interferência de vizinhos. Enquanto tomava o pequeno-almoço sou surpreendido por uma orquestra de chocalhos, tocados por um rebanho de ovelhas do outro lado da margem, em simultâneo com o chilrear de pássaros cuja espécie desconheço. Sentado junto de uma mesa de parque de merendas feito em material reciclado, e tentando focar o rebanho do outro lado do rio, dou conta de um incrível espelho horizontal que existia entre nós, reflectindo a silhueta das árvores e o rosto do sol.
Decidi registar em vídeo aquilo que se estava a revelar uma das melhores manhãs, senão a mais admirável, que alguma vez tive. Hoje reconheço a total inutilidade desse feito, pois os limites da tecnologia apenas permitem registar a dimensão estética de cada momento e não as que a transcendem. Permaneci sentado, imóvel e de olhos fechados, durante cerca de uma hora. Talvez estivesse a meditar sem a pretensão de o fazer. Para mim, foi um enorme feito. Sempre que me propus meditar, nunca consegui ignorar os pensamentos que me tentavam alcançar e que habitavam a minha mente mais tempo do que eu gostaria.
Li, algures, um livro em que o autor dizia que a mente, parte de toda esta incrível e complexa máquina que é o corpo humano, é uma ferramenta, e o acto de pensar deve ser feito apenas quando necessário. O problema é que na sociedade onde vivo e na geração a que pertenço, observo que perdemos o domínio desta ferramenta e nos tornámos escravos dela. Pensar tornou-se um estado natural permanente.
Um dia normal na cidade é passado na companhia de multidões, carros, aviões, anúncios, outdoors, mupis, cartazes, luzes, televisões, smartphones, montras, e muito mais. Do acordar ao adormecer, somos constantemente expostos a uma imensidão de imagens e informações para o nosso cérebro processar, fazendo do nosso subconsciente um depósito de conteúdo que condiciona o nosso estado de consciência e de presença - aquele que usaríamos para recuperar o controlo sobre a nossa mente ou abrandá-la. Caso contrário, tornamo-nos reféns da nossa própria mente e afogamo-nos num mar de pensamentos fortemente agitado, à maré do ambiente urbano e tecnológico pelo qual passamos, sem viver.
Após ter meditado, iniciei a caminhada para explorar a vila, de mochila às costas.
Ali a vida acontecia calmamente. Poucos carros circulavam pelas ruas e as pessoas que não caminhavam com serenidade, repousavam nos bancos espalhados pela vila. Ao longo dos inúmeros lugares estrategicamente pensados para contemplar a incrível vista no decorrer da subida até ao Castelo, a distinção entre turistas, trabalhadores e moradores era feita somente pelo traje com que cobriam os seus corpos.
Após explorar cada miradouro, cheguei ao Castelo de Mértola, situado na confluência da Ribeira de Oeiras com o rio Guadiana. Visitei a alcáçova do Castelo onde se encontra o Campo Arqueológico de Mértola e onde podemos ver as ruínas de um bairro muçulmano. Visitei a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, único exemplar de arquitetura religiosa islâmica remanescente no país e, por último, o cemitério, com uma incrível vista para a ponte da Ribeira de Oeiras. Ainda no Castelo, ao conversar um pouco com uma funcionária que se encontrava na sua pausa de cigarro, apercebi-me que ainda havia alguns museus que eu poderia ter visitado, mas não tencionava passar o tempo em lugares fechados, muito menos com bilheteira, pois parte do desafio era utilizar o mínimo dinheiro possível, tirando o máximo partido do que teria à minha mercê.
Pelo meio da tarde, senti que já tinha retirado de Mértola o que havia para retirar. O propósito desta viagem era estar em constante movimento, sem permanecer no mesmo lugar mais do que uma noite.
Depois de algum tempo a pensar qual seria o meu próximo destino, decidi rumar em direção a Vila Nova de Santo André, para visitar uma amiga muito especial dos meus tempos de faculdade, algo que já adiava há muito tempo. Depois de confirmada a disponibilidade dela, voltei à estrada nacional, aproveitando para descobrir algumas vilas e aldeias pelo caminho. Ao chegar a Santiago do Cacém, uma cidade um pouco mais desenvolvida e movimentada, comecei a desconfiar que, com o pouco tempo que tinha, não teria muita sorte em encontrar um lugar seguro e tranquilo para passar a noite no carro. Adiei essa resolução para depois e concentrei-me em chegar a Santo André...
Revisão por: Inês Simões e Hugo Rebelo
Poderão também acompanhar visualmente esta viagem aqui.