Pequeno Livro Verde
Estou de regresso a este meu canto literário, cujas minhas visitas se tem revelado reduzidas, dado o tempo que tenho dedicado ao meu ofício de artes visuais. Não tem sido fácil encaixar a escrita, que se revela para mim tão urgente, tanto quanto o meu trabalho de colagens, nos dias que para mim se tem tornado cada vez mais curtos. Porém, hoje encontro uma brecha para escrever sobre algo com que fui abençoado na terça-feira passada.
No passado dia 3 de Julho, preparava calmamente uma modesta mala para pernoitar perto da deslumbrante Serra de Aire, a fim de celebrar mais uma volta ao sol. Na mochila pessoal, que anda comigo diariamente, tinha já um livro que andava a ler nos últimos dias, O Conceito de Angustia de Søren Kierkegaard, no entanto, embora esteja alinhado com o meu estado de espírito nos últimos tempos, achei que seria demasiado pesado para uma celebração. Fixei por um breve instante o olhar na minha, ainda pequena, estante de livros, imaginei as características do lugar para onde iria viajar, reflecti sobre uma recente conversa que tive com a minha namorada, que me acompanhou nesta viagem, em que me falava sobre minha possível necessidade de me reconectar, uma vez mais, com a natureza, e peguei num pequeno livro verde que trouxe do Brasil, que tem como nome, Futuro Ancestral.
No final da manhã, após chegar ao local onde iria ficar hospedado, na freguesia de Minde, em Alcacena, decidi simplesmente passar a tarde deitado numa espreguiçadeira, junto à piscina, com vista para a serra, a observar a coreografia das andorinhas no céu azul, a alimentar o corpo de vitamina D, e a alimentar a alma com o silêncio da natureza. Não peguei no livro.
No dia seguinte, aproveitei a manhã para visitar as majestosas Grutas de Mira de Aire. Estava receoso, mas determinado, pois haviam-me dito que o percurso se fazia numa descida com cerca de setecentos degraus, e embora caminhe pelas minhas próprias pernas, ainda tenho mobilidade reduzida. Superado o desafio com sucesso, entrei no carro para contemplar a Serra de Mira de Aire sob várias perspectivas, enquanto conduzia até Porto de Mós para finalmente conhecer o Castelo de D. Fuas Roupinho — já o havia avistado de longe, em outras viagens, e tinha ficado intrigado com as suas verdes cúpulas piramidais. Não peguei no livro.
Terminada a visita ao castelo, perto das dezassete horas, discutia com a minha namorada sobre o que mais poderíamos visitar naquela tarde antes de regressar a Lisboa. Eis quando ela pega no seu telemóvel e recebe uma mensagem da sua mãe, a dizer que se dirigia até ao edifício da Culturgest em Lisboa, para assistir a uma conferência no âmbito do festival Inside Out, em que o convidado principal era o Ailton Krenak (o autor do pequeno livro verde). O evento começaria dentro de uma hora e meia, era precisamente o tempo de viagem estimado que o gps nos indicava. Olhámos um para o outro, com tamanha surpresa e entusiasmo, e percebemos que o que poderíamos ainda visitar naquela tarde, não estava nos arredores de Porto de Mós, mas sim em Lisboa.
A meio da viagem fomos informados de que estava uma imensidão de pessoas na fila, que a sala onde iria decorrer a conferência já estava lotada, e que estavam a estudar uma solução para conseguir acolher todos os que aguardavam por aquele momento. Algo que não nos surpreendeu quando soubemos que o auditório para o efeito dispunha de apenas 145 lugares. É no mínimo irónico, a organização supor que pouco mais de cem pares de ouvidos estariam interessados em escutar a incrível sabedoria das palavras de Ailton Krenak.
Chegámos ao edifício da Culturgest, depois de cem quilómetros de viagem, e percebemos que a solução que encontraram foi abertura de uma pequena sala com a transmissão da conferência numa televisão de trinta e duas polegadas, deixando ainda de fora uma quantidade considerável de pessoas, incluindo nós. Decidimos então sair do edifício para tomar um café ali perto, enquanto esperávamos a mãe da minha namorada, que assistia à conferência na tal pequena sala.
Quando voltámos à Culturgest, uma hora depois, apercebi-me que estavam pessoas sentadas numas escadas, a ver também a conferência numa pequena televisão instalada no acesso ao hall de entrada do auditório. Juntámo-nos a elas para ver os últimos vinte minutos da conversa, e decidimos aguardar pela saída de todos os que se encontravam no auditório, na esperança de conseguirmos ver o Krenak. Peguei no livro.
Apesar de não ter tido a felicidade de assistir à conferência como tanto desejaria, saí do edifício da Culturgest com um abraço espirituoso do Ailton Krenak, com a imagem do seu sorriso, e com uma dedicatória sua escrita no meu livro verde, juntamente com uma árvore que o próprio desenhou enquanto conversávamos.
Este testemunho não é sobre um autógrafo de um escritor num exemplar adquirido por um fã, até porque Ailton Krenak não é um escritor no verdadeiro sentido da palavra. A trilogia de livros que lançou pela editora Companhia Das Letras são um aglomerado de textos elaborados a partir dos seus discursos, e das suas intervenções públicas, no âmbito do seu notável trabalho enquanto activista na luta pelos direitos dos povos indígenas, e pela preservação do meio ambiente.
Krenak possui uma enorme capacidade como orador, consegue tocar no mais íntimo da nossa consciência com uma incrível sabedoria, e com todo o seu conhecimento ancestral, de uma forma tão clara, humilde, e tão leve ao ponto de nos conseguir arrancar um sorriso no meio do caos. Krenak representa para mim a esperança de que ainda é possível desacelerar e voltar a por os pés na terra, a ponto de vivermos em simbiose com a natureza e assim trazer um pouco mais de equilíbrio ao mundo.
Como grande admirador do seu trabalho e da sua essência humana, recebi a sua dedicatória no meu livro, e o seu abraço, como uma enorme bênção, e como um sinal do universo lembrando-me de abraçar árvores, para não me esquecer de que eu também sou natureza, não estou separado dela.
Quando tirei o livro da estante para colocar na mala de viagem, no dia anterior, jamais imaginaria que no dia seguinte iria viver esta privilegiada experiência. Não sei se foi o destino, ou se foi o acaso. O que eu sei, é que a vida está cheia de bonitas coincidências, e alegra-me significá-las.
PS:. Ambos trazíamos vestidos umas calças pretas e uma camisa verde.