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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

04
Fev21

Sou, Com Certeza, Uma Guitarra Portuguesa

Aqui há dias fui surpreendido com uma mensagem de um ex-professor, por quem nutro uma enorme consideração. Deu-me aulas de som no secundário e é hoje um guitarrista inteiramente dedicado ao Fado. Em conversa, por mensagens, confidenciei-lhe a minha admiração por saber que tocava um instrumento que tenho tatuado no peito e que, embora eu não o saiba tocar, uso-o como metáfora para descrever a minha natureza humana. Algo que o motivou a perguntar de que forma via eu a Guitarra Portuguesa para esse efeito.

 

ds

 

Eis a resposta:

Para mim, a Guitarra Portuguesa emite um som naturalmente triste e melancólico. Nenhum outro instrumento consegue conduzir, tão harmoniosamente, um poema triste até às profundezas da nossa alma. É tão rica na sua sonoridade como a nossa língua no seu vocabulário, característica que faz com que ambas consigam expressar com maior rigor os nossos sentimentos e as nossas emoções. Nem nos seus momentos solitários, na ausência de um poema, ela perde essa sua capacidade de expressão. Fechar os olhos e ouvir um solo de Guitarra Portuguesa, é ouvir uma história, é sentir uma vida. Quem nunca se deliciou a ouvi-la nas mãos do homem dos mil dedos, Carlos Paredes?

Apesar dessa condição característica, é também possível a partir dela expressar ou sentir (na minha condição de ouvinte) a nossa alegria, conforme se verifica em alguns Fados. No entanto, até nessa expressão alegre encontro resquícios de tristeza. Talvez se explique com a insegurança e a incerteza com que viviam os portugueses nos tempos em que o Fado ganhava forma.

Essa “Tristeza Alegre” é uma espécie de coquetel chamado Saudade, sentimento característico de um povo nostálgico e crente no destino. Ao contrário da visão comum da época, não creio no destino enquanto espectador de um caminho já traçado — o meu fado é apenas e simplesmente a hora da minha morte. Até que ela chegue, faço da Saudade a minha alegria nos raros momentos de tristeza. Vejo na Saudade uma incrível sabedoria, pois ao contrário de tudo na vida, que tendemos a qualificar como positivo ou negativo, ela não é passível de ser qualificada. A Saudade é recordar com gratidão o passado que foi e que não voltará a ser.

Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, […]

(Álvaro de Campos)

A Guitarra Portuguesa mostra-me como existe beleza na tristeza e como é importante aceitá-la e acolhê-la como parte da vida. Enquanto a sua chama dura, podemos aprender com ela, ressignificá-la e até usá-la em benefício da nossa criatividade. Estar triste não é ser-se triste, assim como estar alegre não é ser-se alegre — são ambos momentâneos, nada têm que ver com a felicidade.

“A alegria e o sofrimento são inseparáveis como compassos diferentes da mesma música.” (Herman Hesse)

 

 

Fotografia: Nuno Cacho c/ Slow J no Coliseu dos Recreios (Super Bock em Stock 2019)