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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

13
Mai21

Não Há Vida Sem Sementes

Durante toda a minha vida, surgiram no meu caminho algumas pessoas e acontecimentos que foram essenciais e determinantes para a minha formação enquanto ser humano. Embora pareça romantizar, todas essas coisas que na altura pareceram uma simples mistura de acasos e coincidências, e sem servir grande propósito, passaram hoje a ganhar um novo e profundo sentido. Foram sementes que o universo plantou no meu solo e que apenas hoje reuniram condições para germinar — o meu estado de consciência.

Para ilustrar este meu pensamento, uma dessas sementes de que falo é o livro Siddhartha de Hermann Hesse. Esta obra que guardo religiosamente, desde os meus treze anos de idade, fez parte do programa de Língua Portuguesa quando estudava no sétimo ano do ensino básico. Algo invulgar que se explica pelo simples facto de o professor que o introduziu, ter sido ao mesmo tempo professor de Filosofia noutras turmas do colégio onde tive o privilégio de estudar.

Este professor era uma pessoa com uma personalidade bastante peculiar, e não se limitava a injectar-nos informação nesta massa encefálica que todos nós transportamos. Tinha um humor característico, com uma pitada de ironia e de sarcasmo que por vezes utilizava, e com grande classe, para “reduzir um aluno à sua insignificância” — como várias vezes me sugeriu nas alturas em que eu desempenhava a minha voluntária função de bobo da corte em plena sala de aula. A sua maior habilidade era a de provocar as nossas crenças e a de estimular o pensamento crítico, para que nos conhecêssemos a nós próprios e soubéssemos qual o nosso lugar no mundo, ao mesmo tempo que nos ensinava o domínio da língua de Camões.

Esta sua forma peculiar de ensinar, era o modelo de ensino mais próximo daquilo que considero ideal para uma sociedade mais crítica, a fim de construir um mundo melhor e mais justo. Dentro do ensino tradicional vigente, este professor não se limitou a cumpri-lo, ele fez diferente e de uma forma tão elevada que influenciou fortemente a vida de vários alunos — não fui certamente o único tocado pela sua nobre arte de ensinar.

Em certo dia, numa das suas aulas, decidiu levar-nos para uma sala própria para o efeito, e colocou-nos a assistir ao filme O Clube dos Poetas Mortos. Quem já viu este filme, desconfiará certamente que esta sua aula foi mais uma semente que o professor me deixou. Considerei-o até hoje, um dos meus filmes de eleição, mesmo sem ter tido maturidade para absorver toda a sua profundidade e substância.

 

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Quinze anos depois, a viver um ano sabático, e no meio de um processo catártico, após uma experiência “traumática” que me fez colocar toda a minha vida em perspectiva, decidi voltar a viajar pelas folhas do religiosamente guardado, Siddhartha. Dessa vez com vinte e oito anos, e já alcançado os objectivos que havia planeado de acordo com os padrões da sociedade: formação académica; sucesso profissional; carta de condução; companheira; casa; carro. A clássica história que a maioria de nós algum dia desejou viver ou que ainda hoje deseja — em busca da felicidade que alguns dos nossos pais tanto tentaram, e falharam, com essa mesma fórmula que tanto nos venderam na esperança que tivéssemos mais sucesso. A mesma felicidade que desde a infância nos habituámos a ver em desenhos animados, anúncios publicitários, filmes e telenovelas.

A metamorfose que vivia agora fez-me desconstruir todo meu caminho e a deixar para trás tudo o que havia conquistado, pois tudo tinha e já nada me servia. Comecei a questionar quem eu era (será que alguma vez o tinha sido?), e a questionar todas as minhas escolhas até ao momento (será que foram minhas?). 

Ler o Siddhartha durante esse processo de mudança foi uma caminhada avassaladora, foi como levantar o véu de Maya e alimentar a fome de sentido e de verdade que eu andava a sentir. Trouxe-me lucidez e sobriedade após muitos anos de felicidade ilusória impulsionada pela embriaguez dos sentidos. Encorajou-me a começar de novo, a abandonar o velho Eu, e a conhecer os meus padrões; condicionamentos; sistema de crenças; e por fim, a desapegar-me de todos eles. Inspirou-me a descobrir a minha verdadeira essência, a buscar sentido entre o vazio, e a construir uma vida que servisse para mim.

Ainda nessa altura, senti-me motivado a contrariar o princípio que tinha de não ver filmes repetidamente, e, voltei a rever O Clube dos Poetas Mortos, curiosamente, lançado no ano em que nasci. Entre a premissa do Carpe Diem, e os trechos de poesia citados pelo professor Keating e os seus alunos, durante todo o filme, há uma passagem em particular que me tocou profundamente. No momento em que Neil Perry faz a abertura da primeira reunião do clube, na caverna, este cita Henry David Thoreau:

“Fui para os bosques viver de livre vontade; Para sugar todo o tutano da vida; Para aniquilar tudo o que não era vida; E para, quando morrer, não descobrir que não vivi.”

Recordo-me de ter pausado o filme para absorver o que acabava de ouvir. Foi algo arrebatador, pois apercebi-me que era precisamente aquilo que eu precisava fazer com a minha vida. Era a confirmação daquilo que a minha intuição ultimamente me sussurrava. Foi como um farol a iluminar o meu caminho, para que sombra nenhuma me fizesse recuar os passos que começava a dar nessa direcção, e, para eternizar esse momento, decidi tatuar esses versos no meu corpo, tal como um rito de passagem.

Esta relação com o filme estava apenas a começar.

Alguns dias depois, ocorreu-me o seguinte pensamento: se o filme conduziu-me a esta incrível mensagem de Henry Thoreau, esta mensagem terá de me conduzir à sua verdadeira fonte, pois nela beberei muito mais da sabedoria do autor. Eis quando descobri que o livro que Neil Perry citava na caverna se chamava Walden ou a Vida nos Bosques.

Em poucas palavras, pois teria de reservar mais tempo para fazer jus à importância deste livro, posso dizer que fiz na sua leitura a viagem mais incrível e transformadora de toda a minha vida. Um mágico trilho de quatrocentas páginas com uma descrição sensivelmente tocante sobre a flora e a fauna, dignas de um observador assíduo, fazendo analogias e criando metáforas com a condição humana.

Num único livro, escrito em 1846, encontrei uma alma livre, e um homem lúcido que aborda de forma crítica e sóbria temas, ainda hoje, tão actuais como: o capitalismo; o consumismo; o conforto; a desigualdade; a espiritualidade; os valores do trabalho; a desconexão do homem com a natureza; as fragilidades das identidades e relações humanas. Um homem que sem os rótulos do mundo contemporâneo em que muitos se tentam encaixar e consequentemente se dividir, era naturalmente espiritual, minimalista, ambientalista, vegetariano, todos esses nomes sonantes que se disseminaram nas mídias digitais e redes sociais.

Este livro conduziu-me a várias dimensões espirituais e a vários lugares do meu mundo interno. Fez-me querer experienciar uma vida simples, com apenas o essencial, mais perto e conectado com a natureza, e sobretudo, na companhia de mim próprio. Levou-me mais tarde a viver sozinho numa caravana durante cerca de um ano, tendo como principal objectivo a descoberta da palavra Solitude.

Embora céptico por experiência, considero-me um ser místico por natureza, tenho o talento inato de encontrar significado em cada sopro da vida. Se, por um lado, creio que não há sentido na vida além do simples acto de viver, e que, não viemos ao mundo com algum propósito ou missão por cumprir; por outro, creio que sem este misticismo e esta fome de ressignificar as coisas que nela acontecem, eu seria apenas uma alma vazia — uma vida sem poesia, é uma vida sem sabor.

Após estes quinze anos, desde a primeira aula que tive com este meu professor, o solo tornou-se fértil, e as sementes que outrora tinham caído, começaram finalmente a germinar. Agora sei porque reparei nelas, e por que razão as mantive guardadas durante muito tempo.

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