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Epifania dos Vinte e Oito

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

“Aquele que mover o mundo, primeiro se moverá.”

Epifania dos Vinte e Oito

01
Dez21

Activismo + Redes sociais = Aprovação social

Podia bem ficar-me pelo título. Não é lá grande fórmula, tampouco uma invenção, mas funciona. Dispensa todo e qualquer esforço em expressar por palavras a reflexão que se segue. Tenho a certeza que se a colocasse sobre uma imagem de fundo e partilhasse na minha conta de instagram, renderia uns quantos Likes e partilhas, até mais do que este texto (talvez faça a experiência). As frases bonitas estão na moda, enquanto os livros nem por isso, de onde muitas vezes elas são retiradas. A demanda por conteúdo de fácil e rápida digestão está a aumentar em flecha, e com isso, o número de “produtores de nada” também. Mas vamos ao que interessa.

 

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Considero que existe uma diferença entre pessoas ilustres, famosos, e influencers. Estes últimos, os mais recentes, tendem a fundir-se com o título de famosos, já pouco os distingue na verdade. Um famoso que não se torne influencer morre na praia, e um influencer que não seja famoso terá exactamente o mesmo destino. Já os ilustres, que se distinguem por mérito próprio, pela sua excelência e pelas suas capacidades, sobrevivem sem a necessidade de seduzir potenciais seguidores. 

O poder mediático dos ilustres nasce do reconhecimento dos seus feitos e das suas obras, o dos famosos pode nascer de variadíssimas formas, como cair de um skate ou aparecer num reality show, e o dos influencers, nasce do nada. Enquanto nos primeiros, o trabalho é o seu principal foco e o seu reconhecimento apenas uma consequência, nos dois últimos as prioridades estão invertidas. A todo momento têm de se reinventar e explorar novas formas de se manterem na ribalta, porque aquilo que os ascendeu é de tal forma frágil e efémero, que não os sustém na linha da frente por muito tempo. 

As redes sociais tornaram-se numa arena onde todos competem pela atenção do público. As regras do jogo mudaram. Devido ao surgimento do algoritmo e do seu constante aperfeiçoamento, plataformas como o instagram, que antes mostravam no feed de cada utilizador, e por ordem cronológica, todos os conteúdos publicados pelas pessoas que estes seguiam, hoje filtram esses mesmos conteúdos de acordo com uma série de critérios, fazendo com que muitos deles fiquem pelo caminho.

Alguns ilustres aproveitaram a sua notoriedade, isto é, o seu poder, para dar voz, nestas plataformas, a causas sociais com as quais estão genuinamente engajados. Já os famosos e os Influencers, ao perceberem que mostrando preocupações sociais podiam aumentar a sua popularidade entre as massas, passaram também a fazê-lo, gerando assim “conteúdo” que se torna viral, e que os torna a eles próprios notícias de jornal, de revistas cor-de-rosa e tema de conversa em programas de televisão — um pouco à semelhança das pessoas que fazem donativos generosos a instituições para escapar dos pesados impostos. Não é que eu tenha propriamente algo contra isso, ainda bem para as instituições e para os beneficiários. A verdadeira questão é que nem tudo é o que se faz parecer.

No que toca aos donativos monetários, a motivação de cada pessoa pode ser diferente, mas o resultado desse gesto é o mesmo independentemente de quem o faça. Já nas campanhas de sensibilização online, aí o resultado não é efectivamente o mesmo. Quando a intenção é ser falado e ficar bem visto, a sua campanha será algo sem substância, cujo impacto no público será efémero e insuficiente para causar reflexão — trata-se apenas de propaganda e sensacionalismo. Uma publicação ou storie à la activista, no meio de muitas outras sobre coisas triviais, é uma gota no oceano que rapidamente se evapora. Faz-me lembrar alguns políticos e associações quando inauguram projectos sociais ou ambientais, aparentemente inovadores, que depois de ganharem prémios e darem boas machetes na comunicação social, decidem mudar a página e deixar cair esses mesmos projectos por falta de investimento.

Hoje, podemos observar um enorme desequilíbrio no mundo, quer a nível ambiental, quer a nível espiritual. Estamos cada vez mais divididos e polarizados, e muito se deve ao algoritmo do mundo digital que favorece a criação de bolhas sociais. Numa altura em que questões como a crise ambiental, o racismo, a igualdade de género, os direitos dos animais, os direitos da comunidade LGBTI, entre outros, têm dominado a internet e consequentemente os media, os famosos e influencers perceberam que a ostentação de beleza e riqueza, que faziam com maior frequência, não lhes ficaria muito bem no mundo actual. Além disso, podem correr o risco de não saírem de um certo nicho de pessoas, ou até mesmo de serem cancelados. O mesmo podemos observar nas empresas, que hoje se sentem forçadas a repensar a forma como se apresentam no mercado, e como fabricam e vendem os seus produtos ou serviços. Vestem a capa de empresas verdes, mostram preocupações ambientais e sociais, e adotam práticas mais sustentáveis e humanas para não serem alvo de processos, nem apanhados em escândalos que poderão comprometer a sua cotação na bolsa. Relembremos, é apenas uma capa na maior parte dos casos.

Para ser mais preciso, estas pessoas já não procuram apenas likes e seguidores, procuram também sentir que são especiais e mostrar que fazem a diferença no mundo — já não é cool ser-se apenas famoso. É preciso ser-se activista e filantropo, para garantirmos o nosso lugar no céu e sentirmo-nos como uma espécie de Madre Teresa de Calcutá. Carregam a pretensão de querer mudar o mundo e de influenciar as massas, enquanto no backstage são o oposto daquilo que pregam, e onde por vezes são apanhados na curva. Querem ser Gretas e Malalas com apenas um quinto do esforço e da renúncia que estas têm de fazer diariamente, assim como muitas outras vozes activas pelos direitos humanos e pelo meio ambiente.

Durante o período de confinamento a que todos fomos submetidos no âmbito da pandemia, observei que muitas das pessoas cuja vida profissional depende do público, e que foram muito prejudicadas, como por exemplo a classe artística e cultural, aproveitaram o tempo livre para se dedicarem mais ao activismo fast-food. Frequentemente faziam lives e publicações nas suas redes a defender causas pelas quais tinham alguma simpatia, ou nas quais se reviam. Para mim, foi notório a falta de profundidade no que defendiam, e em muitos casos, completamente desalinhados daquilo que habitualmente representam. Foi um claro aproveitamento dos temas que pontualmente dominavam os noticiários em todo o mundo, para poderem fazer conteúdo e assim manterem a sua popularidade. 

Embora o que me tenha motivado a escrever sobre este tema tenha sido as capas de beatice e moralismo que observei nas pessoas que dominam a atenção do público nas redes sociais, esta prática estende-se a todo e qualquer utilizador comum que tenha uma conta numa destas plataformas. Neste grupo o cenário de hipocrisia é ainda mais visível. Se em relação ao primeiro grupo, tudo o que escrevi foi convicção minha, neste segundo é uma certeza, uma vez que muitos dos stories e publicações que vejo, são de pessoas que eu conheço de alguma forma, logo, a hipocrisia se revela para mim como as algas da praia da Ribeira do Cavalo. São capazes de fazer um storie a apoiar um causa ou a manifestar determinada preocupação, e logo a seguir contradizerem-se com uma outra storie vulgar do seu dia-a-dia. Como por exemplo, partilhar uma imagem que manifesta uma preocupação pelo aquecimento global e na partilha seguinte uma fotografia sua no avião em direcção a Punta Cana; partilhar uma fotografia de uma mulher com pelos nas axilas, mostrando ser contra as convenções sociais impostas, e de seguida uma fotografia sua em bikini parecendo um autêntica barbie #afazerpraia; fazer um live participando numa manifestação contra as touradas no Campo Pequeno, e depois um storie com o seu menu no McDonalds’s do Saldanha. Enfim, tenho contradições para dar e vender, seriam precisas mais páginas só para isso.

Quem nunca caiu numa contradição que atire a primeira pedra. 

Eis que o problema não está em por vezes, sem nos apercebermos, acabarmos por ter práticas que não estão inteiramente alinhadas com aquilo que defendemos, ou por vezes, sermos alvo daquilo que nós próprios condenamos — não acredito em perfeição, acredito em aperfeiçoamento. Estou a referir-me apenas aos “políticos” e “activistas” de smartphone, que pregam a sua verdade com arrogância e superioridade moral, verdade essa muitas vezes emprestada por terceiros que fizeram o seu trabalho de casa (ou não), como por exemplo as celebridades e os influencers que seguem nos seus feeds. São também estas pessoas que ostracizam aqueles que não pensam igual a si, e que distorcem factos para incitar discurso do ódio. São os primeiros a desrespeitar o próximo quando confrontados com argumentos contrários, não apenas por se sentirem impotentes com o tamanho da sua ignorância, mas porque sentem que os elásticos que sustêm a sua máscara estão prestes a rebentar.

As redes sociais vieram abrir espaço para que todos nós possamos gritar ao mundo que existimos e o quão especiais somos. Fazemo-lo produzindo e partilhando conteúdos, ou participando em discussões políticas e sociais, mostrando que temos uma opinião e que defendemos causas nobres. Não tenho nada contra isso. Ainda bem que existe um espaço aberto para que todos possam partilhar os seus talentos, ou para que se possam expressar livremente, o problema é que muitos escolhem fazê-lo sem o mínimo esforço e pelas razões erradas. Escolhemos parecer algo que não somos no mundo virtual, para obter algo que não temos no mundo real.

Voltando ao activismo instantâneo. Parece-me claro que existe uma certa vaidade em se praticar o bem. Veste-se altruísmo para ficar na moda, como quem mete um filtro numa fotografia. Pessoalmente, não acredito em altruísmo. Fazer algo de positivo por terceiros é um acto egoísta, fazemo-lo porque nos sentimos bem connosco ao doar-nos. Não existe nada de errado nisso, pelo contrário, triste é fazê-lo e ainda sentir vaidade por isso.

“A vaidade é um principio de corrupção.”

Machado de Assis